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Não posso mais ir ao mercado com meu marido, o cheiro do açougue está em tudo. Cheiro de amoníaco, de limpeza, ele me diz, mas para mim é sangue em putrefação. Então meu coração dispara. Evito estar em casa na hora em que a empregada prepara as refeições, não suporto a visão da carne crua, cozida ou frita até que vai. Como tudo rapidamente, tentando ignorar o gosto.

Estávamos indo para Aparecida do Norte. Viagem para agradecer a cura de meus problemas, fazia meses que não sentia a coisa, Mário tinha feito a promessa, eu cumpria sem acreditar muito, mas no fundo querendo acreditar. É importante acreditar, principalmente quando estamos nos sentindo bem, quando estamos mal não pensamos em nada, e não pensar em nada é pensar em tudo e isso para mim é a crise.

Eu tinha dormido; uma viagem tranqüila. No começo, os casais, todos mais idosos do que nós, haviam rezado um terço. Achei bom fazer parte de alguma coisa, éramos romeiros percorrendo o caminho da devoção. Senti um pouquinho de alegria, principalmente por me lembrar dos terços da infância, talvez por isso tenha dormido apesar do desconforto, eu que consigo apenas umas poucas horas de sono em meu colchão, assim mesmo depois de estender um lençol limpo. Isso me acalma. Saber que não há sombras nos lençóis, que eles guardam um pouquinho do sol.

Dormia em paz e em paz permaneci mesmo quando acordei com o alvoroço no ônibus, olhando tudo meio distante. Estava sentada na poltrona do corredor. Mário, ao lado, abrira a janela e exclamava:

– Nossa Senhora! Nossa Se­­nhora!

Por um momento, achei que tivéssemos chegado, e a viagem me pareceu curta. Lentamente, o ônibus saiu do asfalto, os molejos macios me empurraram para o lado de Mário, eu me encostei nele e ele me abraçou.

– Um acidente – ele disse.

Olhei pela janela e vi a confusão de coisas no asfalto. Algo se movia, rolando na escuridão.

O ônibus parou e o motorista abriu a porta da cabine, pedindo para ninguém sair, logo chegaria socorro. Ele falava e as pessoas esqueciam do reumatismo e da idade para ganhar o corredor, obrigando-o a recuar e deixar os curiosos descerem. Mário passou por mim, apertando minhas pernas, e seguiu os outros.

Em poucos minutos o ônibus estava vazio. Achei melhor acompanhar os romeiros. Saí na hora em que uma ambulância da em­­presa de pedágio – depois, disseram que tínhamos acabado de passar um pedágio – chegou, outros carros também pararam, eu olhei tudo meio de longe, os faróis acesos revelavam o caminhão destruído, dois carros achatados, uma confusão de caixas, algo líquido no asfalto. Olhei para um dos carros e vi corpos quando o farol de um caminhão em ma­­nobra iluminou tudo. Eram jo­­vens, alguém contou. Tinham saído do posto de gasolina e entrado na frente do caminhão, quatro rapazes recém-formados, com 20 e tantos anos, todos mortos. Mas o motorista do caminhão sobreviveu e era um senhor de cabelos brancos. Fiquei com vergonha de nossa viagem, estávamos indo pedir uma vida melhor, nós que já tínhamos vivido tanto, e aqueles rapazes ali, mortos. Não seria pecado querer viver mais do que eles ou viver melhor quando a eles não foi permitido nem começar? Lembrei-me dos vários anos tentando engravidar, queríamos tanto um filho. Quando o médico disse que não havia mais tratamento, chorei dentro do carro, voltando para casa, e depois durante a noite toda. Por uma semana, não podia ver uma criança que me sentia como se tivesse perdido o filho que nunca tive. Eram meus os quatro filhos mortos neste acidente.

Voltei para o ônibus quando os policiais chegaram, dispersando os curiosos. Cada um completava a história enquanto procurava o assento. Eu só ouvia, olhos fechados e cabeça apertada contra o encosto. Senti Mário passar por mim, minhas pernas tinham enrijecido. Por que o acidente não foi conosco? Um ônibus cheio de adoecidos valia menos do que quatro rapazes. Menos que um feto.

Levei um susto quando algo redondo caiu em minhas pernas. Abri os olhos e encontrei um repolho em meu colo.

– Pegamos muitos – disse meu vizinho.

Então percebi que as pessoas guardavam repolhos no compartimento das malas. Iriam até Aparecida do Norte e só voltariam para casa dois dias depois, mas saqueavam a carga do caminhão. Meu vizinho, um senhor de rosto obscenamente bronzeado, ainda me olhava, esperando que eu agradecesse. Como não falei nada, ele me explicou:

– Vi que vocês não pegaram nenhum.

Tentei sorrir, meio desesperada. Nesse momento, o motorista ligou o ônibus e apagou a luz interna. Havia muita conversa, uma mulher ensinava a fazer charutos de repolho, mais saborosos do que os de folha de parreira. Ela não parou de dar receitas mesmo quando retomamos a viagem, e eu sem saber o que fazer com a cabeça de repolho. Era um filho dormindo em meu colo.

Segurei-a com cuidado, usando as duas mãos, sentindo uma coisa visguenta que tinha manchado meu vestido. Carreguei aquilo até o dia nascer e descobrir, horrorizada, o que me sujara.

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