• Carregando...

Cresci num mundo sem produtos com marcas. Quase tudo era feito em casa ou produzido no quintal e imediações. Manga nós colhíamos nos pés, vergados pela superprodução, porque eram mangas sem pedigree, pequeninas, caroços imensos e muito, mas muito fiapo mesmo. Se verde, comia-se com sal. Era como eu a preferia. Se madura, já meio passada. Socava-se bastante a manga ainda com casca, furava-se o seu bico e mamava-se o líquido gosmento.

O que me assusta hoje é que as mangas que compro no mercado, imensas, macias e sem fiapos, um tanto sem gosto, é bem verdade, trazem o selo do produtor. Manga com etiqueta, portanto. E ela não vem mais do nosso solo familiar, mas de outros estados e regiões do país.

Sim, havia as maçãs aristocráticas, cosmopolitas e senhoras de si. Las manzanas arrentinas. Envoltas em papel roxo, bem fininho. Minha mãe comprava duas para repartir com os quatro filhos. E só em ocasiões especiais. Não pensem que essas tais ocasiões eram festas ou datas alusivas. Era quando ficávamos doentes, na maioria das vezes internados. Então apareciam as maçãs. Uma convenção muito boba, mas que todos, mesmo os mais pobres, seguiam. Além dos remédios e das internações, havia o gasto com as maçãs.

Era um universo material tão restrito que, quando me recordo de alguns episódios, fico abismado com a ausência das marcas. Toalhas de rosto e de banho eram feitas com pano de sacos de açúcar. E todos usavam a mesma toalha. Sabonete, bem no começo não havia. Nós nos lavávamos com sabão de soda.

Como matávamos muitos porcos, as vísceras, as gorduras e todas as porcariadas que não serviam para consumo eram destinadas a um tacho que ficava num fogão a lenha improvisado com tijolos. Acrescentava-se um pacote de soda cáustica, mexia-se a mistura, deixando esfriar para, depois, com uma faca velha, cortar tudo em pedações pesados. Esse sabão ficava maturando num jirau e servia para tudo. Para lavar roupa. Para a louça. E para o banho. Sim, era com ele que nos lavávamos. O sabão ficava escuro e tinha cheiro forte; depois liguei a sua cor à dos cadáveres em formal. Cruz credo!

Com hábitos de higiene dessa natureza, não preciso dizer que não escovávamos os dentes. Deixava-se tudo ir cariando e um dia o dentista, um japonês barateiro, extraía os dentes bons e também os podres e brindava os clientes com uma dentadura dupla. Era o sinal de maioridade, quando se perdia a dentição natural e se ganhava a postiça. Consegui escapar deste destino. Meio por sorte.

Como todos os meninos de minha rua, uns mais outros menos pobres, eu juntava ferro-velho para vender. Uma vez por mês passava um senhor para arrematar o estoque. Os produtos mais valorizados eram alumínio e cobre. Saíamos pelos lixos à cata desses tesouros desprezados pelos ricos. E voltávamos com um saco cheio de tranqueiras.

Por causa das campanhas da escola, comecei a ouvir falar em pasta de dentes e escovas. E como encontrava vários tubos, que na época eram de um alumínio mole, nos lixos, passei a apertá-los e devorar os restinhos da pasta.

Como era bom. Era melhor do que doce de leite, feito pela mãe com o leite que buscávamos todos os dias na chácara do avô. Assim, fui me acostumando a esses e outros sabores civilizados.

Em certo fim de ano, um parente mais abastado nos visitou e perguntou que doce eu queria. Ele iria comprar. Não tive dúvida.

– Pasta de dente sabor hortel㠖 falei, despertando o riso de todos.

É ainda um de meus doces prediletos. Tenho sempre um bom estoque em casa, mais ou menos como o viciado em guloseimas esconde chocolate até debaixo da cama. Nos restaurantes, quando perguntam se quero sobremesa, morro de vontade de pedir um tubo de dentifrício.

Como nada dura, um dia paramos de fazer sabão de soda, pois a carne de porco estava causando problemas. Se a carne já fazia mal, imaginem o que não provocava em nossa pele aquele sabão produzido com restos.

A mãe começou a consumir algumas coisas oriundas da mercearia. Lata de óleo para cozinhar. Sabão em pedra. Sabonete Gessi, ah, os sabonetes Gessi foram o primeiro luxo de minha vida.

Exigi que a mãe comprasse escovas para todos. Mas não quiseram investir em pasta de dente, alegando ser muito cara e acabar logo. As escovas ficavam no banheiro, mas não tinham muita utilidade. Como a precisão faz a invenção, comecei a lubrificar a escova no sabonete que ficava na pia, descobrindo que o sabor do sabonete não chegava nem perto do das pastas de dente sugadas em tubos recolhidos no lixo.

Anos mais tarde, quando entrou no ar a campanha publicitária que falava no Sorriso Colgate, apelidei o meu de Sorriso Gessi. Um sorriso meio amarelo, é bem verdade, mas limpinho.

O sabonete servia, portanto, para tudo, para escovar os dentes, para ensaboar o corpo, o cabelo e, logo, para fazer espuma em meu rosto – eu começava a me barbear, lutando para estimular o crescimento de um buço que não prometia grande coisa. Nas festas, cabeleira úmida, tudo recendia a esse perfume barato de sabonete, que tomava conta de tudo. Os pedaços pequenos de Gessi eram guardados num copo no banheiro e depois viravam sachês, que perfumavam gavetas e armários.

A situação econômica acabou melhorando, e o sertão foi dando lugar à civilização. Passamos a consumir marcas consagradas.

Volkswagen, Ford, Chevrolet, calças USTOP, tênis Bamba. Coca-Cola, Crush, Kolynos, Telefunken, Kibom, Leite Moça, Toddy...

Numa viagem de carro, com toda a família, para São Paulo, isso nos idos de 70, nossa maior alegria foi ver as grandes e poderosas fábricas de produtos cujas marcas eram, para nós, quase divinas, de tão distantes. Mas desde então o que cada vez se distancia mais é a roça com sua higiene à base de sabão de soda.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]