• Carregando...

Passo por duas mulheres que discutem em uma esquina. Enquanto cruzo a rua, ouço a mais nova delas:

"... para um lugar em que eu viva melhor. E daí será como se a senhora nunca tivesse tido filha".

Volto-me, comovido com o drama, mas a moça, que já tinha se virado, anda lentamente pela avenida. A mãe, vendedora de bugigangas no sinaleiro, começa sua via-crúcis pelos carros.

***

Minutos depois, em uma pizarria, numa mesa na calçada, uma mulher conta a um amigo:

"Então ele disse: filha, o pai está saindo de casa. Minha mãe em Búzios, com meus irmãos e outros parentes. Apenas meu pai, minha avó e eu. Quando voltou, reuniu a gente para comunicar a separação, inesperada para ela. E a caçula, bobinha de mim, disse que já sabia. Ficou tão furiosa, eu devia ter ligado para ela, que me deixou três dias de castigo, sem sair do quarto".

O amigo ouve em silêncio. Pede mais chope. Eu me viro e vejo que é uma mulher bonita, nossos olhares se cruzam. Também peço mais chope.

Ela é veterinária, bastante conhecida em Ipanema. Os donos de animais – e são tantos neste Rio Zona Sul – param para conversar.

"Sabe aquela cachorrinha que peguei na rua?" – diz uma senhora que se aproximou – "Está muito doente, problema do coração. Não consegue nem subir em minha cama. Agora comprei um colchonete e ela dorme no chão, ao meu lado".

"Amanhã passo lá", diz a veterinária.

"Então tchau, Roberta".

E fico sabendo o nome de minha vizinha de mesa, que continua o diálogo com o amigo:

"Uma menina na noite, bem vestida, não é preconceito, ela faz o quer de um homem. Não tem compromisso. Não esperava isso dele, mas logo vai perceber o erro e aí será tarde demais".

Acende um cigarro e nos olhamos.

"Eu tenho meus amigos. Amo meus amigos. São a melhor coisa na minha vida", Roberta diz.

Outra cliente passa, com o marido, e elas combinam levar o cachorro à clínica, para um exame. A mulher pergunta do filho.

"Já com dois anos", Roberta informa.

E se despedem, ela ainda bebe com seu silencioso ouvinte até quebrar um copo ao deixá-lo no tampo de mármore da mesa, bem no instante em que chegam a mãe e o filho de Roberta. A velha tem o cabelo curto, masculino, fuma e apresenta a pele envelhecida dos fumantes.

"Venha me dar um beijo", diz Roberta ao filho.

O menino a beija na testa e volta para perto da avó. Discutem com quem vai ficar a criança à noite porque Roberta quer se divertir um pouco. Pago a conta e ganho a rua, sem saber o resto da história.

***

Na calçada, onde vários mendigos dormem alinhados, na tarde ensolarada, um velho pequeno e negro, totalmente desdentado, brinca em seu cobertor com três filhotinhos de cachorro, todos pretinhos, com a pelagem reluzindo em meio aos trapos dos mendigos.

Eu sorrio para o velho, querendo desejar: boa tarde, meu São Francisquinho!

***

Andando próximo de duas jovens, provavelmente estudantes, ouço:

"O pivete chegou no ponto de ônibus e mandou eu passar tudo senão levava bala. As pessoas correram. Eu disse: tudo o quê? E mostrei as moedas na mão. Você acha que se eu tivesse alguma coisa estaria agora aqui esperando a merda do ônibus? Eu gritava. Ele então abaixou o revólver e disse: vai em paz, meu berro não é pra tu, não. Quando o ônibus chegou, entrei e, na hora de pagar, derrubei todas as moedas no chão. Só naquela hora comecei a tremer de medo".

***

Naquele tempo, era moderno dormir em beliche. Disputávamos para ficar na parte de cima, o maior dos privilégios. Podíamos assim continuar nosso dia de meninos que subiam em árvores como quem foge da vida adulta.

Depois, conheci o beliche do colégio interno. Já não tinha nenhum encanto, era uma gaveta, um escaninho para arquivar, à noite, os ex-meninos.

Em formatos diferentes, os beliches sobreviveram na decoração contemporânea, mas nunca mais me interessei por este móvel, com o qual me reencontro, por acaso, nesta estada no Rio. No apartamento que me arranjaram, há uma cama de casal com um closet embaixo. É preciso escalar a cama por uma escada que lembra a dos barcos. Da clareira do colchão, perto do teto, olho os vastos territórios do pequeno quarto como o marujo no cesto da gávea.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]