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Todo motorista está orientado a não pegar passageiro na rua, só pelo rádio. A cidade cada vez mais perigosa, e depois de certa hora o taxista é um pequeno cofre vagando sem proteção. Nunca pego ninguém assim. Já perdi muita corrida. Mesmo em noite de pouco movimento, quando não tinha feito quase nada, teria que entregar o carro para o patrão sem o valor da diária, não sei falei para o senhor, mas pago diária para usar este carro da empresa – mesmo nestes momentos, recusei passageiro solto.

Sabe, quando vejo alguém apanhando na noite, ou um acidente de carro ou qualquer outra coisa, não tenho dó. Se a pessoa está se divertindo até tão tarde é porque tem alguma culpa. Eu só trabalho neste horário porque preciso, senão estaria com meu pijama em casa, vendo televisão com a patroa.

Não, nada contra gente como o senhor, que sai para se distrair um pouco. A peça de teatro era boa? Eu não vou a teatro, falta de costume. Mas o senhor volta cedo, está no seu direito e na normalidade. Não gosto de passageiros que procuram táxi às 4 da manhã.

Na sexta de madrugada eu já ia para a empresa. Tinha sido boa a noite. Estava para amanhecer. É a hora mais perigosa. Vem uma escuridão maior, pois a luz das estrelas e da lua desaparece, e ainda não nasceu o sol. Então vejo uma mulher ajudando outra a andar. Uma está ferida, a perna erguida para trás, e se agarra no pescoço da outra. Um homem da minha idade vê duas mulheres assim, àquela hora, e não resiste à tentação de ajudar. Elas pediram para eu parar o carro. Tive uma bobeira e parei. Até abri a porta de trás para elas.

– O que aconteceu? – perguntei.

– Ela torceu o pé, acho que quebrou – a outra respondeu, enquanto a machucada gemia ao entrar no carro.

Perguntei se queriam um hospital. E a machucada, gritou, pro hospital não. E fechou a porta. Arranquei com o carro. Elas deram o endereço de um bairro decente. Fiquei aliviado. Se fosse para uma das vilas perigosas, eu teria deixado as duas ali no centro. Mas gosto de gente trabalhadora, mesmo que estejam se divertindo um pouco. A juventude pode. Olhei pelo retrovisor, fico sempre cuidando do passageiro, e elas me pareceram bem distintas. A machucada gemia, fazia pequenas caretas. Fui tocando o carro. Não sei se o senhor percebeu, mas gosto de falar. De contar casos. Mas com elas não puxei conversa, sempre fui meio tímido com mulheres.

Na hora em que estava virando uma esquina, senti o aço frio no pescoço.

– É um assalto – uma delas gritou.

Nem olhei para trás. A ponta da faca tinha furado minha pele. Pele de velho é assim mesmo, sensível. Apenas falei que o dinheiro estava no bolso da camisa. A mão de uma delas, mão fria e fina, entrou no meu bolso. O meu mamilo se arrepiou. Mas ela foi rápida e profissional. Tirou o maço de notas. Acenderam a luz do teto, eu olhei pelo retrovisor. Vi que eram duas mulheres jovens e magras. Eu poderia reagir, mas estava paralisado. Elas gritaram que queriam mais dinheiro. Sabe, não sou de freqüentar bar de mulheres, mas era como se tivesse saído com elas e agora elas queriam me depenar.

– Onde está o resto do dinheiro?

Eu poderia dizer que não tinha mais, sou apenas um trabalhador, dona. Mas não estava em meu juízo. Não é que mostrei o dinheiro escondido no painel! Dois maços, com as notas mais graúdas. A diária e o meu lucro. O dinheiro ficou com a que tinha ajudado a amiga a andar. Ela era a chefe. Vi que era mais bonita. Mais forte também. A outra mais meiga. Eu acho que ri. Ri porque estava deslumbrado com as bandidas. Por isso não tinha nem reagido.

– Cadê sua carteira? – a mais forte perguntou.

– Não ando com carteira.

– Claro que anda. Senão seria preso. Onde está a carteira, meu bem?

– Lá no porta-malas – falei, bobinho de tudo.

– É isso aí. É bom colaborar. Pára o carro, velhote.

O senhor não sabe como ofende uma pessoa chamar a gente assim. Velhote. Pisei no freio de uma vez, o motor ainda engatado. O carro morreu, a faca furou um pouco o meu pescoço. Só vi depois, quando cheguei em casa, as costas da camisa cheia de sangue. Abri o porta-malas com o botão do painel.

As duas desceram e pegaram a carteira que fica no bolso de uma blusa, jogada no porta-malas. Eu me agachei e achei uma faca que o outro motorista esconde sob o tapete.

Saí do carro com ódio. A mais forte viu que eu estava para briga e correu com o dinheiro e a carteira. A mais fraca, quando me viu, tentou fugir, mas dei uma rasteira e ela caiu. Pulei em cima e dei várias facadas na perna dela. Olha, sou um homem de paz. Nunca tinha feito isso. Mas eu ia matar aquela cadela. O barulho da faca entrando na coxa, cortando nervos, era oco. Senti que bati no osso umas vezes. E enfiei de novo e de novo.

Daí levei um chute no rosto. A outra tinha voltado. Tentei me proteger com a mão e ela me quebrou o dedo com outro chute. Veja aí como ainda está roxo. Caído, levei mais umas pesadas. A maldita era mesmo forte. Fiquei no chão. A minha agressora ajudou a outra a se levantar. Elas se abraçaram e foram embora, uma meio que arrastando a outra. Não podiam ser atendidas no hospital, tinham que ir para casa, e não iriam encontrar táxi numa hora daquelas, ainda mais assim, sangrando. A moça com a perna erguida gemia. Ela se virou e, sob a luz do poste, vi que a expressão de dor era a mesma de quando ela entrou no carro. Sabia fingir a diaba.

Então me diga: quem pode com um bicho desses?

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