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Precisamos de algumas frases feitas para manter uma conversa em situações de banalidade ou de formalidade. É isso que se espera de uma pessoa que vive no meio das outras: que ela possa reverenciar as convenções. O indivíduo, por exemplo, não acredita na mística do ano novo, mas deseja um bom ano para pessoas amigas ou meramente conhecidas. Neste momento, não é ele que está falando, mas a própria linguagem que funciona sozinha.

Essas frases são acionadas nas ocasiões mais diversas, para consolar pessoas, concluir um assunto, refletir sobre acontecimentos. Há quem as use com moderação, mas outros falam apenas por meio desses clichês. Por mais que se policie, ninguém está, no entanto, a salvo deles.

Por trás de cada frase há um conceito sobre as coisas, sobre a própria vida. Então, ao repetir um desses chavões, nós estamos vendendo determinada visão do mundo, que talvez não seja nem a nossa, mas que nós passamos para frente como a expressão de uma verdade, de uma tendência, de uma ideologia.

Cheguei àquela triste idade em que começamos a contar os anos para a aposentadoria. Fiz isso o ano passado. Falta ainda um bom tempo, mas no meu caderninho interior, lá no fundo escuro dos meus pensamentos, comecei uma contagem regressiva.

Tenho, por isso, conversado sobre o assunto com os meus colegas de trabalho que estão prestes a receber a merecida alforria. Quase todos dizem a mesma coisa.

– Vou aproveitar para viajar.

A crer neste desejo secreto dos futuros aposentados, a vida deles será de deslocamentos para lugares que eles gostariam de conhecer ou de rever. O trabalho não permitia passeios sonhados ao longo de décadas.

Mas tenho observado que, mesmo expressando esse desejo, a maioria deles acaba se ocupando com outras coisas. Muitos até se tornam ainda mais caseiros. Alguns chegam a se mudar para sítios e chácaras. Mas, às vésperas da aposentadoria, quase todos se saem com a frase de que vão aproveitar o tempo livre para viajar.

Falamos isso porque é o que se espera. Imaginemos uma pessoa que está fechando o seu tempo de serviço e diz que quer agora ficar trancada em casa. Isso causaria o protesto de todos, e ela seria vista como depressiva. Trabalhou tanto para terminar assim, as pessoas com certeza diriam. Então, usamos o clichê de que gastaremos merecidamente o período de descanso percorrendo o mundo.

Mas cada um tentará, neste período de disponibilidade, ocupar-se distintamente. Muitos continuarão trabalhando em outras atividades. Alguns se mudarão para a praia. Ou para uma cidade maior ou menor. Enfim, a aposentadoria é muito mais do que viagens.

Como tirei uma licença (a primeira na vida), todos perguntam para onde vou. Claro, gosto de viajar e terei que fazer algumas viagens no período, mas a coisa que mais quero, e é o que tenho feito, é me trancar em casa para ler. Disciplinei meu tempo, tentando ter horário para tudo. Só estou ligando o computador entre meio dia e as 5 horas da tarde, passando a manhã entre os livros.

Como uma licença é uma espécie de aposentadoria provisória, não correspondo ao desejo padrão dos futuros aposentados. Qualquer deslocamento para mim pode ser um atrapalho. Meu projeto é permanecer o máximo de tempo em casa, como um antiviajante.

Era exatamente isso que eu pensava até me lembrar que estou sendo muito rigoroso. Estou pensando apenas na viagem no espaço, no deslocamento físico. Ficando em casa, na companhia de livros, tenho feito viagens no tempo, e principalmente viagens ao interior de mim mesmo – e está aí um lugar que quero conhecer muito bem antes de morrer.

* A colunista Marleth Silva está de férias e retorna no dia 5 de fevereiro.

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