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"Em qualquer área, mesmo entre os catadores de lixo, haverá sempre uma elite, por ser próprio da natureza humana buscar algum aprimoramento. Acusar pessoas ou opiniões de elitistas é sintoma do idiotismo desses tempos de anemia intelectual."

Estou farto dos imbecis. Alguém pode perguntar como então suporto minha imagem no espelho. E a resposta é simples: todos os dias luto para deixar de ser o imbecil que sou num meio em que a maioria está convicta de sua imbecilidade, vista como fulguração de gênio.

O imbecil é o profissional das certezas restritivas. Aliás, todas as certezas são restritivas. Só as dúvidas comportam a vastidão; e nisso de dúvidas até que sou bem servido.

O problema de quem alimenta dúvidas, de quem habita este território sem limites, é que ele não se reconhece em nenhum discurso, e desenvolve uma visão incômoda de tudo.

Não suporto essa bobagem bêbada que é o ódio contra as ditas elites. Elite virou palavrão. Qualquer opinião mais rigorosa que emitimos é logo fichada assim. Se gostamos de Machado de Assis, é porque nos deixamos deslumbrar pela cultura das classes vencedoras. Meu Deus, logo Machadinho, mulato com uma história de improbabilidades, e que foi um irônico, não perdoando ninguém?!

Não gosto, por exemplo, de pagode. Acho Zeca Pagodinho um verdadeiro lixo. Como acho lixo puro 90% da música brasileira, essa que virou sinônimo de Brasil. Há anos, ouço alguns poucos CDs de música clássica, tentando educar meu gosto musical. E não vejo valor poético em nossos letristas, mesmo naqueles que admiro.

E o futebol? Para mim vale menos que a folha caída de uma árvore. Taí outro mito popular que não contribui para nada. Meus amigos de infância que viveram a paixão por esse esporte frustraram-se, pois o futebol, embora tido como acessível a todos, é extremamente seletivo.

Em qualquer área, mesmo entre os catadores de lixo, haverá sempre uma elite, por ser próprio da natureza humana buscar algum aprimoramento. Acusar pessoas ou opiniões de elitistas é sintoma do idiotismo desses tempos de anemia intelectual.

Filho de agricultores pobres, meu sonho sempre foi fazer parte da cultura. Entrei na escola para aprender o máximo que podia, embora tenha recebido sempre o mínimo, a cesta-básica de informação – hoje, só vem a cesta-básica, sem qualquer informação. Odiei a escola por isso. Queria aprender. Queria uma escola que, nos padrões atuais, seria carimbada de elitista.

A crise da escola pública, tão alardeada, é mais uma crise de conceitos pedagógicos. Ao questionar a hierarquia intelectual, tirando do educador o papel de detentor de um conhecimento que deve ser admirado, a escola esvaziou-se de sua função formadora, contentando-se com o papel de ser um depósito de infâncias e juventudes desnorteadas. A escola não quer mais formar uma elite.

E assim a sociedade vai ficando cada vez mais rasa, pois os ricos não têm um projeto cultural. Esta havia se tornado uma área própria das classes mais pobres, que orientaram sua vida para este fim. Da união de uma experiência de pobreza com os instrumentos da alta cultura surgiram os maiores monumentos da arte e do pensamento do mundo contemporâneo. E os poucos ricos que contam em nossa tradição foram trânsfugas, que deixaram sua classe para viver nesta fronteira.

Agora, presenciamos um ocaso intelectual e artístico. Uns poucos rebelados continuarão fazendo arte e produzindo pensamento contra a nova ordem. Mas se sentirão negados pelas instituições criadas para incentivá-los, muito mais preocupadas com questões sociais do que com qualquer outra coisa.

Quando começo a ler um clássico, sinto-me o ser mais desprezível do mundo. É como se eu tivesse afrontando os que passam fome, os desabrigados, os desempregados, enfim, todos os excluídos. E o que era para produzir uma alegria, o contato com uma grande obra, acaba despertando sentimentos negativos. Está errado gostar de Borges? Por que ler D. Quixote mais uma vez? Gastar o fim de semana com Raul Pompéia, o que é isso, perversão cultural?

Todos os dias, antes de me preparar para mais uma dessas aventuras, tenho que afirmar a importância deste mundo, dizer a mim mesmo que foi sempre entre as melhores mentes que eu quis viver, e que estas não estão nos programas de tevê, nos bares, nas reuniões políticas, na rua, não estão entre meus contemporâneos, mas na biblioteca, com seus volumes atemporais.

Quando vivia com minha família de semi-analfabetos, eu conquistava pela leitura uma outra nacionalidade, um outro status, coisas que a realidade me sonegava. Esta ultrapassagem está se tornando impossível com a exigência de que nos contentemos com o nosso lugar no mundo, como se fosse traição sonhar-se diferente, viver outra história, outro tempo, deixar crescer outra pele, menos áspera. Era este o meu projeto: não saber qual minha identidade por adesão a várias delas.

Mas hoje somos todos iguais – um bando de imbecis, ouvindo Zeca Pagodinho e similares.

www.miguelsanches.com.br

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