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Depois de ter perdido, em 1990, as eleições presidenciais para Alberto Fujimori, o escritor Mario Vargas Llosa tinha um conhecimento bem mais profundo do país. Ele o percorrera na condição de candidato, passando pelas áreas dominadas pelos terroristas do Sendero Luminoso. Felizmente, a resposta que Vargas Llosa deu a essas experiências foi de ordem literária, num de seus romances mais bem realizados – Lituma nos Andes, publicado originalmente em 1993.

Um cabo e um soldado são designados para um posto avançado na região de risco, a vilazinha de Naccos, onde se constrói uma estrada. Acampados naquele fim de mundo, eles se deparam com a solidão e também com a devassidão de uma comunidade essencialmente masculina. Num ambiente de cumplicidades, desaparecem três homens. Eles poderiam ter sido mortos pelos terroristas ou sacrificados aos senhores da montanha, deuses andinos que exigem sangue humano para não destruir as comunidades.

O romance todo é o relato de uma espera. Lituma, o cabo vindo de Piura, e que odeia os Andes, espera a morte a qualquer momento. O jovem Tomás aguarda o retorno da amada, uma prostituta que ele tratou como uma grande dama. Os devassos Dionísio e Adriana, donos da cantina, esperam ganhar dinheiro para deixar a vila.

O romance se estrutura a partir dessa expectativa tensa, que toma conta de todos. Enquanto a vida transcorre em Naccos, ficamos sabendo das execuções feitas pelos terroristas, da devoção de intelectuais estrangeiros ao Peru e das trajetórias dos desaparecidos, que em algum momento cruzaram com o Sendero Luminoso.

Nesse emaranhado de narrativas em ziguezague, uma babel de tempos e vozes muito bem urdida, um dos relatos é central: o do jovem Tomasito que, naquele exílio, aguça o desejo do cabo com as histórias de seu amor imenso por Mercedes. O cabo quer ouvir as sacanagens clássicas, mas o soldado narra a renúncia diante da mulher amada: "Eu sempre esperando coisinhas gostosas, carícias, bolinação, trepadas para me distrair do jejum forçado, e você sempre indo para o lado romântico" (p.141). Tomasito está ali porque matou um homem para proteger a prostituta. Ele é o espírito bom, o rapaz até então virgem que se rende à mulher errada, mas também é o amigo num meio hostil.

Com índole inversa à dele, Dionísio encarna Baco, despertando os instintos mais selvagens das pessoas, convidando-os para que visitem o seu animal interior. Vendedor de um vinho local (o pisco), ele incentiva a orgia em clima apocalíptico e usa sua mulher para despertar as crendices populares mais perversas. O cabo Lituma é posto entre os dois modelos, o do amor romântico e o da devassidão.

Em um processo de adesão, ele chega a passar por um batismo. Surpreendido por um terremoto que destruiu Naccos, Lituma sobrevive e se integra à região: "Estava tranquilo e feliz. Como se tivesse passado num exame, pensou, como se essas montanhas de merda, essa cordilheira de merda, finalmente o tivessem aceitado" (p. 181). Só depois desse episódio ele pode conhecer a alma andina, as suas crenças obscuras. E o que ele descobre, os motivos da morte dos três homens, é algo que o marcará para sempre como símbolo dos delírios coletivos.

Assim, a barbárie tem duas faces no romance: a dos terroristas frios e materialistas, que querem fazer justiça contra todos que não sejam "do povo"; e a das forças dionisíacas, que atualizam práticas de expiação do Peru incaico. Para Vargas Llosa, os dois impulsos se equivalem, revelando um país em que a violência, historicamente represada, está sempre pronta para aflorar.

Neste mundo impiedoso, sobressai o canto de amor de Tomasito por Mercedes, com direito a um final romântico. Ele é um contraponto a essa pátria de assassinos ideológicos ou ritualísticos. Mais do que uma obra política, Lituma nos Andes é um romance amoroso, que coloca a bondade do indivíduo acima de todas as crenças.

Serviço

Lituma nos Andes, de Mario Vargas Llosa. Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman, Alfaguara, 270 páginas, R$ 39,90.

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