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– Sabe quando descobrimos que ficamos velhos? Ele faz a pergunta para a esposa, que o olha com piedade. Os dois têm consciência de que ainda não estão velhos, embora se encontram mais próximos da velhice do que da juventude. Então, ela não gosta de pensar nisso. Mas ele não se cansa de só pensar nisso. Como ela não responde, ele mesmo dá a resposta.

– Quando começamos a quebrar os molares.

Os dois já quebraram o seu primeiro molar. Ela na hora em que foi mastigar uma broa italiana deliciosa que a padaria ao lado da casa deles vende.

– Parece que colocam cimento nesta broa – ele falou uma vez. – Deve ser o segredo da receita.

Lembrou disso quando ela quebrou o dente.

– Daqui para frente só vamos comprar pão de leite – ele a repreendeu, com humor.

Ela estava cansada dessas molecagens do marido.

– Você não podia manter esta boca cheia de dentes fechada de vez em quando!

– Você disse bem, querida: boca cheia de dentes...

– Por favor, não está vendo que para uma mulher perder um dente é uma pequena tragédia.

– Sempre gostei de banguelas. Sabe, para sexo oral elas são as melhores...

– Pelamordedeus, cale essa matraca.

Foram juntos ao dentista já na manhã seguinte. Ele se continha para não fazer uma piada. Diria para o dentista que a mulher estava ali para colocar uma ponte-móvel. Ainda se usava a ponte-móvel, o dente com os ganchinhos laterais para prendê-los aos mais próximos? Tinha visto tanto isso na sua infância e juventude. Alguns tiravam a prótese para escovar.

Não falaria nisso para a esposa, que estava sensível com-mais-esta-perda. Fizeram a consulta e deixaram três cheques polpudos para pagar um dente de porcelana, que reproduzia fielmente o perdido. Ela primeiro recebeu um provisório, de borracha, enquanto esperava moldarem o novo. De vez em quando, o dente de borracha escapava e ela rapidamente o cuspia na mão.

– Passando mal, querida? Quer um remédio para o estômago? – e ele ria igual a um louco.

Já estavam esquecidos do dente, que foi substituído com sucesso, o dentista realmente era bom, quando o marido quebrou o mesmo molar.

– Isso que dá optar por comunhão total de bens na hora do casamento? – ele brincou.

– A maria-mole estava muito dura, vovô – foi a vez dela tripudiar o marido.

Pior, tinha quebrado o dente sem estar comendo nada. Fechou a arcada com força e sentiu uma parede inteira do molar ruir.

– A gente vai se desmanchando. Não é?

– Sem exageros.

Naquele mesmo dia ele se saiu com a história de que começamos a envelhecer quando quebramos o primeiro molar.

Juntos no mesmo dentista, a mesma solução, o mesmo preço, a mesma forma de pagamento. Até nisso eram inseparáveis. Não deviam ter feito aquele maldito juramento: na alegria e na tristeza, blá-blá-blá-blá.

– O senhor tem que colocar um aparelho para corrigir os dentes. A sua mordida está toda errada.

A mulher riu, escondendo a boca com a mão.

– A relação custo/benefício não ajuda.

– Posso indicar um ortodontista que parcele.

Parcelar agora é a chave para tudo. Até para as cirurgias estéticas. Será que a garotas de programa, essas cavalas (ele adorava a palavra ‘cavala’) que aparecem em anúncio também parcelavam os programas? Mas partiu para outra resposta.

– Não é isso, doutor. O tempo de vida que tenho, sabe, já não justifica este tipo de investimento.

– Ele é assim mesmo – a mulher disse. – Rabugento e preconceituoso.

– Fico me imaginando com uma cabeleira branca, camisa xadrez de flanela, mesmo sendo verão, e com um reluzente sorriso metálico. A única vantagem é que não enroscaria comida no aparelho.

– Ué, por quê? – perguntou o dentista.

– Eu estaria tomando apenas mingau – e ele riu.

O fato é que está morde bem com aquela área danificada da boca. E, de vez em quando, olhando para a mulher com os olhos de antigamente, pergunta se está tudo bem lá com o dentinho dela. Ela ri e responde que sim. Não podem ver alguém mais maduro com um aparelho dentário sem que ela olhe para o marido, meio que o ameaçando.

– Sabe quando a gente começa a envelhecer? – ele pergunta com o sorriso malandro de sempre.

– Não me diga que você quebrou outro molar?

– Não, vire essa boca pra lá. Só podemos quebrar mais dentes depois de pagarmos a última prestação deste aqui. Deve ter uma cláusula qualquer assim lá no contrato.

– Contrato?

– No contrato de locação que assinamos para ocupar este corpo.

– Seu idiota... Mas me diga, quando sabemos que estamos envelhecendo?

– O quê? – ele grita, mão em concha no ouvido. – Podia falar um pouco mais alto.

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