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O mundo externo tem comunicação direta com o mundo interior? Para muitos, não. Para mim, é como se não houvesse fronteira. Tudo que está ao meu redor faz parte do que sou, interferindo violentamente em minha estabilidade emocional. Chega a ser uma maldição esta sensibilidade aguçada para as coisas, o que me leva a crises permanentes. Mas é também do meio externo que vem a superação dos momentos angustiantes. Basta me sentir confortável em certo espaço para que tudo que antes era tão traumático passe a ser pacificador.

Uma característica genética de minha família – que encontro em mãe, irmã e filha – é a pele extremamente fina. Isso poderia ser apenas uma marca dermatológica, sem maiores conseqüências em nossa existência, mas acaba determinando esta sensibilidade hiperbólica. Mínimo é o anteparo entre nosso corpo e o mundo, por isso estamos sujeitos a todas as ondas de carinho ou ódio, de ordem ou desordem, de aprovação ou crítica – fatos que nos afetam de forma terrível, pois o mundo nos atinge de cheio.

Talvez pela fragilidade de nossa pele é que gostemos do objeto casa. Não só de ficar em casa, mas de freqüentar territórios que nos dêem a segurança uterina. A casa é a pele que nos falta, é a fortaleza contra o que pode nos destruir. Já sonhei ter o casco de uma tartaruga, mas como é impossível desenvolver biologicamente este outro invólucro, tentamos incorporar a casa. Onde se lê casa, leia-se família. E onde se lê família, leia-se compreensão.

É claro que nem sempre família é compreensão. Mas é este o projeto que temos de família – um lugar onde o mundo se organiza para nos dar uma sensação de bem-estar.

O muito trabalho, as obrigações, as mesquinharias, as vaidades, o desejo aguçado, a cobiça, enfim todo esse mecanismo corrupto que tão bem conhecemos nos afasta dos sentimentos mais nobres. Com isso, ficamos indefesos mesmo em nossa casa, mesmo em meio aos objetos que mais amamos.

É assim que me sinto nos últimos meses ao entrar em minha biblioteca. Como pouco é o tempo que me sobra, a biblioteca estava totalmente bagunçada. Livros pelo chão, poeira nas estantes, volumes atirados de qualquer jeito no sofá, em mesas, em prateleiras. Eu sempre me dava a desculpa de que não podia dedicar as poucas horas livres a uma arrumação, pois me aguardavam tantas tarefas, folhear originais que não param de chegar, ler livros de amigos, dar conta dos volumes que compro – pois quanto menos tempo tenho mais livros compro, como uma forma de defesa. A saída seria pagar para alguém zelar da biblioteca.

Logo quando casamos, minha mulher e eu, mesmo trabalhando, cuidávamos da casa. Por oito anos, dividimos os serviços, pouco saindo sequer para comer fora. Este período acabou com o nascimento de nossa filha, o que nos levou a contratar uma funcionária para os afazeres domésticos. Restou para mim o trato do jardim. Plantávamos muitas coisas e eu aparava alegremente a grama. Mas fui me afastando destes pequenos trabalhos que me davam tanto prazer. Hoje, contrato um jardineiro. A minha desculpa é que não tenho tempo. Ou que é preciso dar serviço às pessoas.

Nem lavar o carro eu lavo. Então, entregar a biblioteca a um estranho seria abdicar de toda e qualquer ação organizadora em casa. Fico sim com a louça do almoço no domingo, quando não optamos por um restaurante. E com as idas ao mercado e à padaria. Mas a casa funciona sem a necessidade de meu trabalho. Assim, só a biblioteca depende de mim.

A bagunça na biblioteca e na minha mesa não reflete apenas minha bagunça interior. É um fator que a complica. Algo está errado em minha vida para que esta desordem cresça tanto e me sufoque. Sei que algumas pessoas vivem muito bem no caos. Mas como tenho a pele fina etc. e tal.

Neste final de semana mais longo, poderia ter feito várias coisas que me aguardavam, mas precisava salvar minha sanidade. Precisava criar um mínimo de ordem. Com uma escova de sapato, uma flanela e panos úmidos, ataquei as estantes onde ficam os livros estrangeiros. Primeiro separei os autores, depois fui tirando o pó das prateleiras, escovando os livros e perfilando-os. No meio de muitos volumes, descobri papéis que ali ficaram por anos. Marcadores, cartões de visita de pessoas que hoje nem sei quem são, rascunhos e até guardanapos de bar. Não conseguindo terminar a leitura de alguns livros, marcara as páginas. Agora, fui tirando estes objetos estranhos e jogando no chão, pois um livro que não foi lido até o fim deve ser considerado um livro nunca lido. Quando voltar a eles, e tenho certeza que um dia voltarei, hei de começar do começo.

Depois de dois dias de trabalho, os autores estrangeiros estão dispostos criteriosamente. Falta cuidar dos nacionais. É um trabalho cansativo, que deprime, pois não tenho tempo para me dedicar à leitura destes livros que me solicitam quando os toco, quando abro suas páginas, quando observo o envelhecimento do papel. Por ora, preciso apenas que eles estejam ordenados, limpos, aguardando-me nas estantes. Mas chegará o dia em que terei que ler ou reler cada um deles.

Ao começar a organizar os livros, estou me organizando. E eles ainda funcionam como uma pele artificial que me protege do mundo, como uma outra casa, habitada por uma família dispersa no tempo e no espaço, mas que hospedo como uma forma de me opor à instabilidade de tudo.

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