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Ele ajeitou a mala na carroceria da camionete, ela enfim levava embora suas últimas coisas. Durante semanas, fora para a casa dos pais em São Paulo sempre com a mala muito cheia para voltar com ela quase vazia. Ele ia sentindo o seu distanciamento pelo crescente ralear das roupas no armário, nas gavetas. Foram ficando apenas as peças mais novas, algumas tinham sido presentes dele.

Na ausência semanal da amada, quando esta inventava coisas para resolver em sua cidade natal, ele abria as portas do armário e chorava olhando os cabides vazios. Poderia viver sem aquela mulher? Mas aceitaria seu modo de vida tão destoante numa cidade do interior? Ele se sentava no pufe do closet, tentando compreender o que acontecia. As roupas escuras e convencionais dele iam cada semana dando o tom dos armários.

Agora, ela levava tudo embora, sem inventar nenhuma desculpa. Estou saindo para sempre da sua vida, ela falou. Da sua vida e desta cidade. Ele não disse um a, mas pensou que antes de mais nada ela saía de seu guarda-roupa. Quando se conheceram, o que mais o encantou nela foi o seu jeito de se vestir. Roupas tão inusitadas, uma tendência esvoaçante para usar blusas, vestidos, xales, batinhas. Nem era uma mulher bonita, mas aquelas roupas faziam dela uma presença forte. Nas horas de amor, ele nunca a deixava se despir de todo. Ficava sempre com uma peça, nem que fosse um lenço no pescoço, e era olhando para este tecido que ele se entregava a todos os devaneios.

Ela arrumou pela última vez a mala. Socou roupas caras lá dentro. Usou os compartimentos laterais, com seus zíperes barulhentos. Misturou roupas sujas com roupas limpas. Ele ouvia tudo da sala. Quando se fez o silêncio, ela o chamou para dizer que partia. A mala estava sobre a cama, monstruosamente inchada. Ele não olhou para a amada. Olhou para a mala.

– Não vai dizer alguma coisa? – ela perguntou.

– Não tenho direito nem ao se retrato?

Ela tinha retirado o porta-retrato do criado, guardando-o sobre as roupas. Era possível enxergar seu volume retangular através do tecido sintético da mala. Era um retrato da época em que ela chegara à cidade para morarem juntos. Ela vestia um vestido social cheio de brilho. O vestido estava indo embora nesta última leva de sua mudança. E junto ela carregava a foto.

– Não, você não fez por merecer nem isso – ela, respondeu, depois de um breve silêncio.

Tentou erguer a mala, mas conseguiu apenas mexê-la um pouco. Neste momento, ouviram a buzina na rua. Ela ia aproveitar uma carona com uma amiga, que viajava a São Paulo para abastecer sua loja de roupas. Ele então se mexeu, afastou-a carinhosamente de perto da cama, pegou a mala e os dois seguiram para a porta da frente. Ela teve a impressão de que ele estava alegre. Seria possível esta última crueldade? Satisfazer-se com a partida da mulher que ele dizia amar.

Ele ajeitou a mala na carroceria da camionete. Era uma dessas carrocerias cobertas com lona. Ele empurrou a mala para o fundo daquilo que parecia um túnel escuro, e fechou levemente a tampa traseira.

– Qualquer dia a gente se vê – ele disse, sem nenhuma ênfase, e voltou para dentro de casa.

Ela entrou chorando na camionete. Era mesmo um monstro. Não sabia como podia ter vivido com um homem assim. Ele ouviu a caminhoneta arrancando violentamente. Naquele instante, dava a última volta na chave da porta.

Foi direto para o closet, olhou os armários vazios e fechou os olhos por uns segundos, para controlar as lágrimas. Não deixara mesmo nada. Mexeu na gaveta onde ficavam as peças íntimas dela, era uma gaveta imensa, cheia de repartições quadriculadas. Sequer uma meia furada restara. E ele caiu de joelhos no tapete. Não suportaria aquele vazio.

Passou o sábado em casa, sem comer. Bebeu e dormiu a tarde toda no sofá, com a tevê ligada. Quando escureceu, ficou olhando a lua erguer-se na janela de cortinas abertas. O telefone tocou. Ele pensou em não atender. Mas estava tão perto, foi só esticar o braço.

– Você não sabe o que me aconteceu – ela disse, desesperada.

Ele não tinha mais interesse em qualquer coisa que ela dissesse. Não era mais sua mulher. Estava morta. O armário, a casa, a cidade, tudo comunicava a inexistência dela.

Diante do silêncio, ela continuou.

– Perdi minha mala.

Ele então deu um pulo no sofá.

– Onde? – meio que gritou.

– Quando saímos aí de casa – não, não é mais sua casa, ele pensou –, estava transtornada com a despedida. Pedi para a Wilma ir rápido, queria me afastar de tudo. Aí, na avenida principal, ela pulou aquele quebra-molas alto. Eu bati a cabeça no teto. E gritei. Wilma se assustou, e isso nos acalmou. Continuamos a viagem tranqüilamente e só no meio do caminho, ao parar para abastecer, vimos a tampa da carroceria aberta. A mala tinha caído.

– Não pode ter sido no caminho?

– Não. Foi no quebra-molas, depois me lembrei do barulho da mala batendo na tampa. Ficou na minha memória como o som da queda um caixão na terra. Um barulho pesado. Você me entende? Lá do posto, eu liguei para você. Mas ninguém atendeu.

– O que eu poderia fazer?

– Ora, procurar a mala para mim. Lá estão minhas melhores roupas...

Ele então desligou o telefone bruscamente, puxando o fio da tomada. Por mais que ela tentasse aquela noite falar com ele, o telefone permanecia desconectado.

Na manhã seguinte, ele se levantou animado e saiu para a missa. Havia motivo agora para ver gente, freqüentar festas, ir a reuniões na casa dos amigos. A qualquer momento encontraria uma mulher vestindo uma daquelas peças perdidas, e ele então se apaixonaria de novo.

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