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A despeito de namorar a ideia do sagrado e tê-la como objeto de interesse filosófico, não sou muito próximo de experiências do gênero. Acompanho o racionalismo budista com entusiasmo, flerto com a perspectiva taoista de uma vida mais natural e tenho o maior respeito pelo humanismo espírita. E, de vez em quando, também acabo fisgado pelos canais de tevê aberta que transmitem sessões de exorcismo e cura. Curiosidade antropológica, sociedade do espetáculo.

Há alguns meses, porém, desconfio ter vivido uma experiência que, se não foi exatamente mística, margeou a “estranha realidade” a que se referia Carlos Castañeda. Nada muito grave – apenas extraordinário na perspectiva de um racionalista mamado e desmamado nas obras de Freud, Marx e Nietzsche.

Até então, eu só imaginava acontecendo com personagens literários como samurais ou ascetas meditadores

A coisa aconteceu mais ou menos assim: manhã de sábado, voltava eu pela ciclovia da Fredolin Wolf, no trecho que fica na vizinhança do parque Tingui. Uma descida de uns seiscentos metros em um ângulo razoável, livre de postes, buracos e saídas de automóveis. Perfeita, em síntese, para quem quer converter o passeio em um registro um pouco mais épico, em especial após um pedal que, algum tempo antes, havia encarado o mesmo local como uma subida manhosa.

Do alto, olhei para frente e acelerei, deixando a bicicleta correr – quarenta, quarenta e cinco quilômetros por hora. E, por uma fração de segundo (e aí reside toda a experiência), percebi a coisa de forma diferente. Não apenas como Rodrigo, mas como uma fusão entre Rodrigo, vento, bicicleta e atenção plena ao momento. Sujeito, situação e síntese - sem julgamento.

Tão rápido quanto veio, a experiência passou, deixando espaço para uma interjeição de espanto ao final da descida. Por uma coisa que, até então, eu só imaginava acontecendo com personagens literários como samurais ou ascetas meditadores – jamais na pedalada de sábado de um curitibano médio.

Voltando para casa encantado e encafifado, fui à internet e encontrei vários artigos acadêmicos relacionando prática desportiva, cansaço físico, produção de endorfinas e experiências de tipo “oceânico” à moda freudiana. Experiências de “encontro com um todo” suprapessoal que também teriam a ver com certas práticas meditativas, especialmente nos contextos do Budismo e do Hinduísmo. Legalíssimo, desejável, mas normalmente inesperado.

Voltei à Fredolin Wolf outras vezes, mas não experimentei o “satori”. Desconfio, aliás, de que só será possível reencontrá-lo no pedal suado, no cansaço e, principalmente, no esquecimento da experiência anterior. O que, ao fim e ao cabo, apenas reforça a beleza do momento.

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