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Sou apaixonado por literatura policial. Sou apaixonado por literatura de aeroporto, que você compra para passar o tempo e afugentar o receio de voar. Literatura salgadinho, cheia de glutamato monossódico e poder de estufamento. Dito isso, posso contar que, no regresso do carnaval, tive a oportunidade de devorar na sala de embarque um livro recente do escritor americano Harlan Coben, que produz histórias policiais como Stephen King produz histórias de terror. Rápidas, sem maiores pretensões (senão a de ganhar um bom capilé) e repletas de sangue. O cidadão é uma máquina de trazer à vida detetives bebuns, policiais com a barba por fazer e psicopatas disfarçados em mulheres de meia idade. Um craque.

Pois descobri que Harlan Coben também é um inovador, pelo menos até onde alcançam meus olhos leitores. Na última página do livro da semana passada, ele deixou um pequeno texto agradecendo a todos os que colaboraram com o trabalho; dentre eles – e é aí que reside o barato da história – estavam aqueles que, mediante generosas contribuições a instituições assistenciais, haviam “comprado” personagens na história.

A história da literatura é repleta de obras que, em nome da fortuna ou do puxa-saquismo, celebraram reis e profetas

Como assim?! Simples: a trama é visitada, vez por outra, por personagens menores legais, mas que não apitam nada. Um cientista forense, o dono do boteco frequentado pelo protagonista, o piloto de drone da vizinhança. Essas figuras é que têm seus nomes vendidos pelo autor. Por exemplo: eu, R.W. Apolloni (nome artístico) resolvo participar do livro de Harlan Coben. Para tanto, injeto capital em uma entidade de proteção animal e, com isso, ganho o direito, garantido contratualmente, de batizar o personagem. R.W. Apolloni, o cafetão camarada de Nova Jersey, por hipótese. Assim, quem contribui pode contar para os amigos que está lá, diante dos olhos de milhões de leitores, e que entrou para a história da literatura. E todos ficam felizes.

A história, é claro, pode despertar questionamentos filosóficos como o relacionado ao direito que o autor tem, ou não, de “liberar” personagens mediante pagamento. Não seria o personagem, então, uma figura sacrossanta cuja liberdade está adstrita aos limites da imaginação incorruptível do escritor? Confesso que não sei. Para mim, é um grande barato (mas não digo que faria o mesmo). A história da literatura é repleta de obras que, em nome da fortuna ou do puxa-saquismo, celebraram reis e profetas. Ou seja: não há nada de novo sob o sol, a não ser a venda de personagens inodoros em livros de aeroporto. Pensando bem, há alguma coisa nova sob o sol.

De resto, a história me leva a pensar na construção de meus próprios personagens. Todo cronista é um repórter e um mentiroso. Como personagem de minha própria crônica, portanto, poderia me dar ao luxo de colocar à venda um personagem de uma crônica futura. Penso na possibilidade de vender uma maestrina de banda marcial ou um ufólogo de Campina Grande do Sul. Quem se habilitar, desde que se comprometa a contribuir para uma boa causa, levante a mão.

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