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Aquela listinha de metas para uma vida valer a pena – "fazer um filho, escrever um livro e plantar uma árvore" – parece ter ganhado mais um item: "abrir uma ONG". A contar pela quantidade de organizações não-governamentais que pipocam no Brasil desde o big-bang dos anos 90 – quando o número de grupos triplicou –, o terceiro setor virou uma versão contemporânea da casa no campo, quintal cheio de filhos e sala cheia de livros. Para que se tenha idéia, não há consenso sobre o total de unidades – até porque nesse exato momento dezenas delas estão nascendo em algum rincão do Brasil. Levantamento do IBGE, em parceria com Associação Brasileira de ONGs (Abong), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife) chegou à estratosférica marca de 275.896 organizações não-governamentais. Isso, em 2002. Quatro anos depois, o consenso é de que são 300 mil, das mais diversas naturezas, tamanhos, gostos e tendências. Identificá-las é que são elas.

A proliferação de organizações fez com que o inevitável acontecesse: o público ficou ressabiado. Todo mundo tem pelo menos um senão a fazer às ONGs. Questiona-se se as organizações não viraram um escoadouro não-contabilizado de verbas públicas – um "caixa dois" das boas intenções sustentadas pelo contribuinte. Há quem as considere redutos de esquerdistas retrógrados. Ou até mesmo um atentado à mentalidade inventiva, revolucionária e anarquista, já que as ONGs, a rigor, são como inatacáveis moças cheias de virtudes: estão sempre ocupadas do bem comum, da ação comunitária e contra elas não há argumento.

As críticas, claro, fazem com que os grupos ponham o bloco na rua para lembrar que as organizações empregam um milhão e meio de pessoas, pelo menos, e reinventaram a maneira de fazer políticas públicas, a ação das igrejas e tiraram as escolas da pasmaceira. O debate está aberto. "As ONGs vão continuar crescendo no Brasil e já correspondem a 2,5% do PIB nacional. Na França, esse valor chega a 30% e já há um ministério específico para o terceiro setor. O único problema é lidar com gente mal-intencionada", comenta o historiador Durvalino Biliatto, 42 anos, coordenador do projeto Mil ONGs, ligado à prefeitura municipal de Londrina – um dos únicos órgãos públicos no país destinado exclusivamente a atender a área. A cidade tem cerca de 500 organizações.

Em 1999, quando a "Era das ONGs" já figurava como um fato consumado, um núcleo de pesquisadores liderado pelo professor universitário Luiz Carlos Merege fez o que tinha de ser feito. Começou do zero – e com metodologia adequada – a contagem das organizações brasileiras. Nasceu o projeto Mapa do Terceiro Setor, abrigado na sucursal paulistana da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Além de quantas, o mapa está respondendo o que fazem, quanto recebem, de onde vem o dinheiro e quais os projetos que desenvolvem. Em seis anos contabilizou 4.589 unidades ongueiras, ligadas a 3.301 organizações diferentes. É 10% de tudo, mas o arrastão já reina como a fonte mais segura para saber da atuação das ONGs no Brasil.

Graças ao estudo de Merege se tem um perfil aproximado das organizações. Elas são notadamente urbanas (88%), funcionam como associações civis (94%) e se concentram na área da educação (21% das ONGs). As áreas de atividade são variadas, mas sujeitas a investimentos que pingam quase sempre nas mesmas goteiras, como o desenvolvimento comunitário (493 projetos cadastrados); saúde (482), cultura (305) e religião (252). O levantamento também permite listar os setores da sociedade menos atendidos, como o dos idosos, portadores de deficiência, soropositivos; e dá uma panorâmica de a quantas andam os financeiros. Há controvérsias, mas o que se levantou é que quase metade das ONGs operam com recursos próprios e apenas 21% com dinheiro público.

O que não tem remédio com a pesquisa da FGV – e não terá tão cedo – continua sendo como descobrir, em meio a esse imenso catálogo, quais organizações estão fazendo a diferença, já que é o mínimo que se espera delas. Ainda não há um índice de mortalidade das ONGs, diz Merege, mas a perspectiva é que, passado o período fértil, devam sobreviver as melhores. "É preciso ter projetos fortes e idéias inovadoras. As criativas e empreendedoras vão ficar", afirma o especialista. O consultor curitibano Carlos Eliandro de Oliveira, 33 anos, há sete atuando como pronto-socorro de ONGs, tem opinião semelhante. Ele calcula existirem 1,2 mil "ó-ene-gês" só em Curitiba. E afirma: organização que não causa mudança social tende a ficar pelo caminho. "A sociedade tem de reconhecer o trabalho de uma organização, e isso exige não perder o público de foco. Tem de gerar dados sobre a comunidade que atende, senão não dá."

A questão tem a ver com uma cilada em que ONGs de primeira viagem costuma cair. Elas nascem de projetos idealistas, mas nem sempre sobrevivem ao "impacto da realidade", aquela hora fatal em que o belo discurso não resiste à ausência de um bom projeto. Sem diagnósticos das áreas de atuação e conhecimento de causa, é naufrágio certo, e é certo que as organizações naufragam por falta de preparo de seus membros. O momento, inclusive, é de cobrança dobrada por parte de quem financia, o que tem feito os agentes se coçarem atrás de formação, parcerias e ação em rede.

Para romper uma das práticas mais nefastas do terceiro setor, a troca da ação solidária pela ação solitária, ongueiros aprenderam a bater na porta da ONG do vizinho, para trabalhar junto, tornar-se visível e "fazer pressão", como salienta Merege. Não costuma ser fácil. "A rede social não tem dono. Isso assusta", pondera Eliandro, para quem o fazer junto é apenas uma das práticas que as organizações se viram obrigadas a aprender. A outra é se profissionalizar, um parto, já que a cultura da informalidade ainda marca o terceiro setor. A mudança de mentalidade, inclusive, passa pela contabilidade em dia, coisa rara, e que torna as ONGs alvo fácil de suspeitas de mau uso de recursos.

A passagem de um estágio a outro assusta. Segundo Eliandro, há grupos que se esmeram tanto em funcionar bem que acabam virando protótipos de empresas, em busca de resultados, desfigurando o sonho bom que os originou. As ONGs de terno e gravata já existem, vieram para ficar e, como de resto, ditam regras. Resta saber se vão conseguir arrastar todas as outras com elas, saindo de vez da listinha das coisas que valem uma vida.

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