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Lá vai o cortejo com indigentes, todos rumo à cova rasa. Oito pessoas são sepultadas assim em Curitiba, em média, por mês: sem lápide, sem nome, apenas com um número, o do serviço médico legal. Eles cumprem à risca a citação biblíca: "Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó hás de tornar" (Gênesis, 3:19). Os cortejos são realizados no Cemitério Parque São Pedro, o único com vagas para indigentes no momento.

A maioria é vítima de morte violenta (homicídios, acidentes de trânsito, outros tipos de acidentes e suicídios). Os mortos não carregavam documentos e alguns mesmo sendo conhecidos não foram procurados pela família no Instituto Médico Legal (IML). Em cinco anos, Curitiba sepultou 288 desconhecidos ou ignorados – identificados e não procurados. Eles representam 2,7% das 10.348 necrópsias feitas no período pelo IML. Ou um terço da pequena Borá (SP), com 823 habitantes, a cidade menos populosa do país.

Nesse tipo de sepultamento, a cerimônia é muito simples. Não há pêsames, homenagens, flores ou lágrimas de parentes. O enterro é feito apenas com os coveiros e o motorista da funerária. Mas para chegar ao cemitério há um longo caminho. O corpo do indigente fica 30 dias na geladeira do IML. É o prazo legal para a família procurar e retirar o cadáver, menos se ele estiver em estado de decomposição. Se isso não ocorrer, a direção da IML solicita autorização judicial e faz o sepultamento. O outro destino são os laboratórios das universidades. Neste caso, os cadáveres são usados nas pesquisas acadêmicas, com autorização judicial.

Para a promotora de Justiça Luciane Evelyn Melluso Freitas, que atua na Vara de Registros Públicos e anexos de Curitiba, a indigência representa uma derrota para o poder público. "A existência da pessoa natural termina com a morte, mas a família tem o direito de sepultar o parente e manter a sua memória viva. Mesmo após a morte, há efeitos jurídicos no mundo em relação à memória de uma pessoa, como por exemplo os direitos autorais", lembra.

De acordo com o sociólogo Gláucio Ari Dillon Soares, P.h.D. em sociologia, do Instituto Universitário de Pesquisas (Iuperj), do Rio de Janeiro, a maioria das vítimas de homicídio é jovem e pobre. "Eles são assassinados, às vezes, por questões irrelevantes", afirma. No Rio de Janeiro, por exemplo, os desconhecidos são enterrados como indigentes porque a maioria das pessoas anda sem documentos ou eles são tirados pelos homicidas, numa espécie de queima de arquivo.

Dos oitos corpos sepultados pelo IML no fim do mês passado, dois estavam nessas condições. Eram jovens e pobres. Foram mortos a golpes de faca e os corpos encontrados na Vila das Torres (área de ocupação, dominada pelo narcotráfico). São mínimas as chances da polícia esclarecer esse tipo de crime. Segundo a Secretaria de Estado da Segurança Pública, porque a principal dificuldade na investigação sobre um homicídio é a não-identificação da vítima.

Caso ninguém reclame o corpo, o IML pede autorização judicial e realiza o enterro no Cemitério Parque São Pedro (particular). Lá, a prefeitura de Curitiba tem uma área e nela mantém mil covas para enterrar indigentes e carentes, podendo ampliar o número a qualquer momento. Os corpos ficam três anos nas covas. Depois, são retirados e colocados num ossário no próprio cemitério.

O diretor de marketing do Parque São Pedro, Ronaldo Vanzo, informa que os túmulos dos indigentes normalmente não são visitados. "No máximo há uma homenagem no dia de Finados", diz. No entanto, ele afirma que o sepultamento dos desconhecidos é feito com muita dignidade. "Aqui ninguém vai para a vala comum. Os nossos jazigos são de concreto, individuais e numerados para facilitar a localização. Temos ainda o sistema de gestão ambiental, o certificado ISO 14.001", explica.

Apesar da vagas no cemitério São Pedro, o chefe do IML na capital, Porcídio Vilani, está preocupado, porque os cemitérios de Curitiba também recebem corpos desconhecidos ou não reclamados, oriundos das cidades vizinhas. "O ideal seria enterrá-los nos municípios onde eles foram encontrados, pois não há mais vagas suficientes na capital", afirma.

Hoje a principal dificuldade do IML é descobrir quem são os desconhecidos. Dentro do estado, a identificação de uma pessoa demora cerca de seis meses – tempo gasto numa pesquisa de impressões digitais no Instituto de Identificação, segundo a promotora Luciane Melluso.

Mas o maior obstáculo é consultar informações de institutos de identificação de outros estados. Por exemplo, o Paraná não tem acesso a dados de Santa Catarina. É possível alguém daquele estado morrer num acidente de trânsito no Paraná e não estar portando documento. Nesse caso, o corpo é levado para o IML. O ideal seria buscar as impressões digitais num arquivo nacional, o que ainda não existe.

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