• Carregando...
“O fundamento das cotas é jurídico e constitucional, pois em nossa Constituição está escrito que todos são iguais perante a lei" | Divulgação
“O fundamento das cotas é jurídico e constitucional, pois em nossa Constituição está escrito que todos são iguais perante a lei"| Foto: Divulgação

A escravidão, o movimento abolicionista, a trajetória de Luís Gama (1830-1882) e as atuais propostas de políticas de ação afirmativa são os tópicos centrais do livro Escravidão Nunca Mais!, do advogado Nelson Câmara, lançado semana passada em São Paulo. Ao analisar a escravidão no Brasil, a obra busca indicar as razões, origens e consequências dessa prática. O autor propõe ainda re­­flexões e discussões sobre políticas de inclusão do índio e do ne­­gro na sociedade brasileira.

"Câmara, militante histórico dos direitos trabalhistas e sindicais, desenvolveu uma pesquisa minuciosa sobre o negro e o ódio no Brasil para resgatar fatos es­­quecidos ao longo dos séculos", diz o senador Paulo Paim (PT-RS), responsável pelo prefácio. "A obra é um aprendizado, uma viagem pela história do Brasil, que cumpre a função primordial de enaltecer a vida e a luta de um dos maiores juristas do país: o abolicionista negro Luís Gama."

Formado pela Universidade Mackenzie, Nelson Câmara tem mestrado em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou por muitos anos como advogado sindical. Foi examinador do exame de ordem da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por 10 anos. É membro de diversas entidades jurídicas e dirigente do Escritório Câmara Sociedade Advogados. "Defendemos que o viável para o Brasil seria a implantação de cotas sociais e não raciais", diz Câmara, que concedeu entrevista à Gazeta do Povo.

A escravidão esteve presente desde os primórdios da colonização das Américas, mas o Brasil foi o último país do mundo a se livrar dessa prática. A resistência da aristocracia rural ao fim da escravatura era maior aqui do que em outros países?

Sim. A escravidão no Brasil durou mais de três séculos e estava atrelada ao modo e processo de produção adotado na economia de monocultura cafeeira e açucareira, além da extrativista de ouro e diamantes, esta especialmente nas Minas Gerais. O senhor de engenho ou o fazendeiro do Sul investiam na aquisição da mão de obra escrava e mantinham todo um aparato de manutenção dessa mercadoria que funcionava como verdadeira máquina operacional de produção. O escravo era o que em latim denominava-se "res", ou seja, coisa ou objeto. Não era considerado ser humano. O Brasil não tinha ainda um mercado consumidor e sua economia era totalmente dependente do processo de exportação para a Europa desses restritos produtos. Esse modo de produção completamente destoante do adotado na Europa acabou por criar uma hipertrofia de nossa economia. Só quando, por volta de 1870, o senador Vergueiro, fazendeiro em Limeira, se apercebeu da vantagem da adoção da mão de obra livre é que o despertar para essa nova mentalidade produtiva começou a despontar. O pro­­cesso começou a ganhar corpo até que em 1888 veio a abolição. Portanto, foi o esgotamento desse sistema econômico que precipitou o fim da escravidão.

Como surgiu o movimento abolicionista?

Começa pela resistência dos próprios escravos e se desenvolve pela conscientização generalizada, não só no sentido da imoralidade da escravidão como também pelo próprio interesse econômico. Zumbi, por volta de 1600, no Quilombo dos Palmares, não foi um combatente contra a escravidão, mas sim um grande chefe para dela fugir e proteger todos aqueles que tinham o mesmo objetivo. Passados 250 anos, em São Paulo, Luís Gama passou a enfrentar o senhor branco dentro de sua própria cidadela. Filiava-se à corrente daqueles que queriam não só a abolição, mas também a integração do negro à sociedade brasileira. Mas isso só passou a ocorrer após a Revolução de 1930.

Qual foi a importância do advogado e jornalista Luís Gama nesse processo?

Gama foi de importância transcendental no processo abolicionista, tanto é que foi reconhecido historicamente como o "paladino da abolição". Negro e ex-escravo que veio menino de Salvador para São Paulo; comprado para pagem dos filhos pequenos de seu senhor, após os 17 anos teve a vida modificada radicalmente na amizade de um jovem da mesma idade, branco e da elite, que lhe repassou grande conhecimento por quatro anos seguidos, que o fez despertar para a realidade que não poderia ser escravo em razão de sua origem, obtendo imediata alforria e colocando-se como secretário do então Secretário da Segurança Pública. A partir daí, sua atividade abolicionista não mais parou, dedicando-se ao jornalismo. Fundou os primeiros jornais satíricos do Brasil, como o Cabrião. Com o sobrinho do patriarca da Independência, José Bonifácio, "O Moço", fundou a Loja Maçônica América. Tornou-se um temido advogado na defesa dos cativos chegando a colocar anúncios em jornais oferecendo patrocínio gratuito. Ao morrer, tinha libertado mais de 500 escravos, tudo com aplicação da lei e do direito.

Como ficaram os ex-escravos após a abolição? Receberam apoio do Estado e da sociedade pa­ra se estabelecer ou foram entregues à própria sorte?

O modo pelo qual foi feita a abolição manteve a crueldade do próprio instituto da escravidão. Os ex-cativos foram simplesmente jogados no olho da rua por não mais interessarem ao modo e processo de produção adotados. Perdeu-se a oportunidade de uma reforma agrária ou pelo menos a concessão de terras para que pudessem eles praticar a lavoura, que é o que sabiam fazer, além de ser a realidade produtiva do Brasil de então. Esse foi um novo crime praticado pelo Estado. Daí a concentração desses ex-cativos na periferia dos grandes centros urbanos formando o que se denomina de palafitas e favelas.

Há quem diga que nós, brasileiros, não somos racistas. Se isso é verdade, por que os indicadores sociais mostram a população negra em condições de vida inferiores às dos brancos?

Os brasileiros não podem ser considerados racistas como, por exemplo, os norte-americanos. Mas, com certeza, somos preconceituosos com os afrodescendentes e indiodescendentes, exatamente com aqueles grupos humanos que formaram nossa economia. É uma enorme contradição, porque formamos uma nação de mestiços. O IBGE recentemente publicou novo censo onde demonstra que na mesma proporção que diminui o porcentual de negros aumenta o de mestiços, que já chega à casa de 49%. Quer dizer que no Brasil de hoje metade da população é constituída por mestiçagem de negros-índios-brancos. Não deveria haver, portanto, lugar para preconceitos. Mas essa camada majoritária continua em condição sócio-econômica inferior.

O senhor apoia as políticas de ação afirmativa, como as cotas para afrodescendentes nas universidades?

Apoio sim as políticas de ação afirmativa como o Estatuto da Igualdade Racial e a implantação de um sistema de cotas transitório – por exemplo, por um decênio –, mas essas não raciais e sim sociais. Explico. Ao invés de serem pela etnia ou cor da pele, devem ser pela origem da escola pública, que é dos pobres e com qualidade de ensino inferior por culpa do próprio Estado, que a abandonou há muitas décadas. Por isso nossa proposta é de um ou dois decênios para que se dê tempo ao poder público de desenvolver políticas para sua recuperação. O fundamento das cotas é jurídico e constitucional, pois em nossa Constituição está escrito que todos são iguais perante a lei. Só que na prática "uns são mais iguais do que os outros". O princípio da igualdade é aristotélico e foi Rui Barbosa quem melhor o definiu: "A igualdade consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam". Quer dizer, se a condição de origem dessa massa humana é diferente, o tratamento escolar a ser dado a ela também deve ser diferente. Daí a necessidade da adoção do sistema de cotas, ainda que transitoriamente.

Serviço:

Escravidão Nunca Mais! – Luís Gama – o paladino da abolição, de Nelson Câmara, 516 páginas, Editora Lettera.doc. Preço: R$ 39.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]