
Imagine, caro leitor, a seguinte situação: você está na condição de paciente e, após exame perfunctório, o areópago decide que você seja mantido no ergástulo. O que você faria? Se não sabe, vai aqui uma recomendação: nesse caso, o melhor é ligar para o seu advogado e não para o seu médico. Afinal, a frase apenas quer dizer que o tribunal (areópago), depois de fazer um exame superficial (perfunctório) do seu Habeas Corpus (paciente é o nome que se dá ao beneficiário de um Habeas Corpus), decidiu manter você na cadeia (ergástulo). Aliás, Habeas Corpus é uma ação que serve para garantir a liberdade de locomoção. Confusões à parte, o exemplo serve para demonstrar a distância entre o Português-nosso-de-cada-dia e o dialeto utilizado por muitos operadores do Direito (magistrados, membros do Ministério Público e advogados), o chamado "juridiquês".
Se fosse apenas matéria-prima para debates entre juristas e brincadeiras entre leigos, o "juridiquês" não seria alvo de tantas críticas. Mas o problema é sua constante utilização em documentos de interesse da população comum, como leis, petições e decisões judiciais. E, assim, o dialeto jurídico passa a ser um obstáculo para o acesso de todos à Justiça. Algumas situações causadas pelo uso indiscriminado do "juridiquês" (e pela falta de sua compreensão) chegam a ser tragicômicas. O juiz Roberto Portugal Bacellar, diretor da Escola da Magistratura do Paraná (Emap), lembra-se de um caso em que um homem foi chamado a depor como testemunha e ficou desesperado com o mandado de intimação. "Ele pediu as contas do trabalho e estava fugindo com a família porque pensou que ia ser preso. Estava escrito no mandado que ele deveria depor nos autos de ação penal e que se não comparecesse seria conduzido mediante vara e seria obrigado a arcar com as despesas da diligência. Aí ele falou com o sogro, que era mais esclarecido do que ele, e o sogro recomendou: olha eu não entendo muito dessas coisas, mas se fosse você me mandava, porque parece sério".
Preocupada com essa falta de sintonia linguística entre o Judiciário e a população, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançou, há quatro anos, a Campanha pela Simplificação da Linguagem Jurídica. Na esteira dessa iniciativa, surgiram novas ideias. Entre elas um projeto de lei, em trâmite na Câmara dos Deputados, que torna obrigatória a "tradução", em linguagem coloquial, das decisões judiciais leia matéria abaixo.
Quem também se motivou com a campanha da AMB foi o juiz aposentado Albino de Brito Freire, membro da Academia Paranaense de Letras, que lançou a obra Manual do Juridiquês Decifrando a Linguagem Forense (Editora JM). No livro, ele destaca pérolas do dialeto jurídico, as quais considera ridículas. Entre as mais esdrúxulas, ele cita: "cártula chéquica" (folha de cheque), "Digesto Obreiro" (para se referir à Consolidação das Leis do Trabalho CLT) e "Magna Corte Araucariana" (nome pomposo para o Tribunal de Justiça do Paraná). "Os juristas, de maneira geral, querem ser diferentes, não querem repetir palavras. Mas termo técnico não tem sinônimo: petição inicial é petição inicial e não petição-ovo, ou peça vestibular, como se lê por aí", diz Brito Freire.
Limites
Segundo Kátia Cilene Corrêa Klassen, ministrante de cursos de Português na Escola Superior de Advocacia (ESA) da seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Paraná), os jargões técnicos são comuns (e úteis, muitas vezes) a todas as profissões, mas é preciso cuidar com exageros. "Há uma medida razoável. Há casos em que o uso do latim, por exemplo, é pertinente", afirma. Bacellar concorda: "Juridiquês, em muitos casos, é exibicionismo. Uso de linguagem técnica é coisa diferente, e muitas vezes é necessário". Para Brito Freire, a linguagem técnica não deve acabar, mas permanecer restrita "ao ambiente próprio", como o meio acadêmico. "Em trabalhos voltados ao povo [como no caso das decisões judiciais], a linguagem deve ser simples. A decisão tem que ser compreendida por qualquer um do povo, sob pena de se desrespeitar o princípio constitucional da publicidade, que deve ser entendido de maneira ampla", completa o magistrado.



