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Preconceito velado

A violência que ninguém vê, mas que também machuca

Em 2003, durante a exibição da novela "Mulheres Apaixonadas", em pleno horário nobre, um assunto até então ignorado pela população virou alvo de debates, mesas-redondas e até campanhas: a humilhação e os maus-tratos sofridos por um casal de idosos nas mãos de uma neta, com quem dividiam o mesmo teto. Naquele ano, a revolta causada pelo drama colaborou até para a aprovação do Estatuto do Idoso, um marco na defesa dos direitos da terceira idade.

Outros tipos de violência, no entanto, que não chamam tanta atenção quanto espancar ou xingar um idoso, ocorrem todos os dias. Pela sutileza e por não serem considerados atos violentos, passam despercebidos e são os mais difíceis de combater. Entre os exemplos estão atitudes que praticamente qualquer pessoa já tomou, como não ter paciência com o idoso, tratá-lo como criança, negar-lhe atendimento preferencial na fila do banco, fingir-se de desentendido ao ver um deles em pé no ônibus ou, por parte de empresas e governos, negar acessibilidade e acesso à saúde e à segurança.

Desrespeito

Na opinião do vice-presidente do Conselho Estadual da Pessoa Idosa (Cedi), Gilson Ribeiro, esse tipo de agressão é o mais difícil de combater, pois é velado. Ainda que não envolva força física ou humilhação, também mina a saúde e a auto-estima do idoso, ao tratá-lo com indiferença e sempre atingi-lo com "indiretas". "No trabalho, é comum que digam a você, quando você é idoso mas ainda não se aposentou, que vão mudar tudo quando você for embora. No dia a dia, as pessoas te rejeitam porque você desconhece a tecnologia, como se a experiência não contasse. Quando isso acontece, atinge em cheio o teu interior. Acho que é pior do que ser agredido".

Para a psicóloga Ana Zahira Bassit, integrantes da seção paulista da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), essas ações têm em comum a falta de respeito pelo idoso, uma forma cruel de violência que nega a história de vida e as conquistas de quem já passou dos 60 anos. Ela lembra que muitos ainda tratam os idosos como pessoas doentes ou crianças, sem capacidade de discernimento. Há famílias que os abandonam em asilos ou, mesmo com eles dentro de casa, agem como se não existissem, jogando fora seus pertences ou não os consultando a respeito de algo que lhes interessa diretamente.

A especialista afirma que essa violência decorre da visão errônea que as pessoa têm da velhice, como algo "feio e sem valor", e que ela precisa ser combatida com educação, mais do que com punição. "As pessoas têm de entender que o envelhecimento é o processo mais democrático que existe. Todo mundo vai passar por isso, a não ser que morra antes".

Na semana em que se comemora o Dia Mundial de Cons­cientização da Violência contra a Pessoa Idosa, instituído no dia 15 de junho, a Delegacia do Idoso de Curitiba, considerada uma das maiores conquistas de movimentos que atuam na área, é um exemplo de que não bastam a boa vontade e o discurso engajado para garantir direitos: desde sua inauguração, em dezembro de 2010, o órgão nunca funcionou. Criada durante a gestão do ex-governador Orlan­do Pessuti, há seis meses, a delegacia não possui delegado designado para cuidar exclusivamente dos crimes envolvendo idosos e não conta com investigadores, psicólogos, assistentes sociais e escrivães.

Em janeiro de 2010, em matéria da Gazeta do Povo, a Secre­taria de Estado da Segurança Pública (Sesp), já durante o governo Beto Richa, anunciou que a designação de servidores exclusivos para a delegacia – que na verdade é um núcleo dentro do 3.° Distrito Policial, no bairro Mercês – ocorreria no máximo até fevereiro. Mas nada foi feito desde então, e nem mesmo pressões do Ministério Público (MP) e do Conselho Estadual da Pessoa Idosa (Cedi), que tem membros do governo do estado, conseguiu arrancar uma definição da secretaria.

A coordenadora do Centro de Apoio Operacional (Caop) das Promotorias de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do MP, Rosana Bevervanço, conta que solicitou informações de inquéritos à delegacia após tomar conhecimento de que idosos encontraram o local fechado. Como resposta, ela recebeu um ofício informando que os serviços não estavam sendo prestados por falta de funcionários e equipamentos. Diante do fato, a promotoria e o Cedi solicitaram audiência com o secretário da Segurança Pública, Reinaldo de Almeida César, para tratar do assunto, mas não obtiveram resposta.

Importância

Para o Ministério Público e o Cedi, a necessidade de uma delegacia específica é consensual, uma vez que esse público, assim como mulheres, crianças e adolescentes, é mais propenso a se tornar vítima de um crime – mas, diferentemente das mulheres, ainda não possui atendimento em delegacias especializadas. "O estado tem de tomar uma iniciativa, pois é sabido que o idoso é uma vítima mais frágil, que em tese oferece menos resistência ao cometimento do crime. E uma técnica investigativa mais apurada e especializada é importante para diminuir o número desses crimes", diz Rosana.

A secretária-executiva do Fórum Popular Permanente da Pessoa Idosa de Curitiba e Região Metropolitana (FPPPI), Edilmere Sprada, conta que a criação da delegacia foi muito comemorada em dezembro, já que sua implantação é uma luta antiga, que remete a 2003, quando o Estatuto do Idoso tipificou as penas para crimes cometidos contra idosos. "Precisamos não apenas de uma delegacia instituída, mas de uma delegacia estruturada", diz. Segundo Edilmere, a demanda hoje na capital é muito grande devido a inúmeros casos de apropriação indébita de aposentadorias, maus tratos e abandono de idosos em hospitais.

Outro lado

A Sesp, por meio de sua assessoria de imprensa, admite o problema e afirma que atualmente não há policiais em número suficiente sequer para prestar atendimento nas delegacias não especializadas, e que não é possível realocar funcionários para a Delegacia do Idoso pelo menos até o ano que vem. A secretaria afirmou que isso só será possível após a realização de um concurso para a contratação de policiais, o que não deve acontecer em menos de um ano.

A assessoria informou ainda que a gestão anterior criou a delegacia mas não se preocupou de dotá-la com orçamento, deixando a cargo da administração seguinte a responsabilidade de estruturá-la. A assessoria não informou quando o secretário pretende atender ao pedido de audiência feito pelo MP e pelo Cedi.

Atendimento

O idoso que queira registrar um boletim de ocorrência não precisaria se deslocar até o 3.° DP. Ele poderia registrá-lo na delegacia mais próxima de sua casa. A diferença é que todos os inquéritos envolvendo crimes contra idosos seriam remetidos à delegacia especializada, que contaria com equipe específica e treinada na área para conduzir as investigações. Isso, de acordo com o MP e o movimento de idosos, dá agilidade, maior sensibilidade e mais precisão investigativa aos processos, mesma razão pela qual se criaram delegacias especializadas da mulher e da criança e do adolescente.

Denúncias de maus-tratos crescem 33%

Denúncias envolvendo violência cometidas contra idosos aumentaram 33% em apenas um ano no Paraná. Os números são de um levantamento feito pelo Disque Idoso do Paraná a pedido da Gazeta do Povo, por ocasião do Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa, comemorado ontem.

Entre janeiro e 14 de junho de 2010 e o mesmo período deste ano, os atendimentos realizados pelo órgão estadual passaram de 853 para 1.138 – e foram de 5,1 casos diários no período de 2010 para 6,8 casos em 2011. Em 2011, os tipos mais comuns de maus-tratos foram a negligência, o abandono ou a exposição do idoso à vulnerabilidade (27,2% do total do período). Em 2010, no mesmo período, eram as agressões verbais e psicológicas que figuravam em primeiro lugar (25,6% do total).

Para a coordenadora do Disque Idoso no Paraná, Dulce Maria Darolt, que comentou o aumento das denúncias em evento realizado ontem na Biblioteca Pública do Paraná, as pessoas estão mais conscientes de que os maus-tratos não são um problema de família, mas uma questão de direitos humanos.

A má notícia é que apenas 1% dos idosos costuma fazer a denúncia – 99% são feitas por conhecidos, vizinhos ou parentes, uma vez que a violência ocorre dentro de casa e o agressor geralmente é filho ou neto da vítima, que tem medo ou pena de denunciá-lo. Com o intuito de combater essa mentalidade, cerca de 80 idosos lembraram a data de ontem com uma caminhada da Biblioteca Pública até a Boca Maldita, ressaltando a importância de comunicar o fato à polícia, ao Ministério Público ou até à Ação Social do município.

Serviço:

O telefone do Disque Idoso é 0800 41 0001.

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