Juristas reagiram com preocupação ao depoimento dado pelo diretor de Polícia Administrativa da Polícia Federal (PF), Rodrigo de Melo Teixeira, ao Senado, nesta terça-feira (19). O diretor compareceu para prestar esclarecimentos sobre a detenção do jornalista Sérgio Tavares no aeroporto de Guarulhos em 25 de fevereiro. Para os juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, o depoimento revela ilegalidades nos procedimentos da Polícia Federal.
O jornalista, português, tinha vindo ao Brasil para cobrir a manifestação pró-Bolsonaro a ser realizada naquele dia. Ao desembarcar, foi retido e interrogado pela Polícia Federal sobre suas opiniões políticas. O episódio provocou reação de um partido político português, Alternativa Democrática Nacional (ADN), que fez referência a uma “ditadura no Brasil”, e fez com que o Senado brasileiro convocasse representante da Polícia Federal para prestar esclarecimentos.
No depoimento, o diretor de Polícia Administrativa da PF confirmou que o jornalista foi retido e interrogado “por causa [das] opiniões dele”.
Esclareceu que o setor de análise do órgão, em Brasília, emitiu alerta sobre o jornalista português após verificar manifestações em redes sociais que, nas palavras do próprio diretor, “beiram um aspecto criminal”. Como exemplos, aludiu a postagens em que o jornalista supostamente teria atacado a honra de ministros do STF, criticado as urnas eletrônicas e feito “manifestação favorável” aos atos de depredação de 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
O diretor não detalhou os casos e, inquirido pelo senador Carlos Portinho (PL-RJ), disse não estar munido de relatórios para comprovar as postagens. O jornalista, na quarta-feira (20), reagiu e negou ter apoiado os atos de 8 de janeiro. Em busca nas suas redes sociais, é possível encontrar apenas postagens nas quais defende os manifestantes como “pacíficos” e chama de “infiltrados” da esquerda os que destruíram edifícios públicos, sem aprovar a conduta.
O diretor da PF citou, ainda, como motivo do interrogatório o fato de o jornalista português ter entrevistado uma pessoa que era alvo de mandado de prisão em aberto no Brasil. Trata-se do jornalista Allan dos Santos, do Terça Livre, que foi alvo de pedido de prisão preventiva formulado pela própria PF, em 2021, ao ministro Alexandre de Moraes. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o próprio Allan dos Santos teve sua extradição negada pelas autoridades dos Estados Unidos por entender que sua prisão foi decretada por “crime de opinião”.
Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam pelo menos três ilegalidades reveladas pelo depoimento do diretor da PF ao Senado:
1) Desnecessidade de visto para jornalista
No termo de declarações do interrogatório de Tavares, consta que ele “respondeu” que estava no Brasil a turismo, de onde se infere que a Polícia Federal perguntou se estava no país a trabalho. Não constam perguntas sobre visto.
No entanto, em nota divulgada à imprensa, a PF afirmou que um dos motivos para a detenção do jornalista seria a suposta necessidade de visto de trabalho para um jornalista fazer a cobertura fotográfica de um evento, como a manifestação do dia 25 de fevereiro.
A afirmação foi desmentida indiretamente pelo próprio diretor da PF, que disse no depoimento ao Senado que o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre Portugal e Brasil permite a permanência de jornalistas por até 90 dias sem necessidade de visto de trabalho. Na verdade, regra do Ministério das Relações Exteriores isenta qualquer jornalista da União Europeia de apresentar o documento para exercer atividade jornalística nesse período.
2) Criminalização de questionar as urnas
Cláudio Henrique Ribeiro da Silva, coordenador do curso de Direito e do Observatório da Liberdade de Expressão da UFOP, afirma que uma das acusações feitas pela PF não constitui crime: a de que o jornalista teria “criticado” urnas eletrônicas, ou mesmo alegado fraude. “Você não pode ser obrigado a ter fé.”
Silva lembra que o atual ministro do STF, Flávio Dino (uma das supostas vítimas do jornalista), já criticou, ele próprio, a confiabilidade das urnas eletrônicas no passado, sem punição. Silva afirma que não houve alteração legislativa, desde então, que justificasse eventual mudança de entendimento de que a mesma conduta teria passado a ser criminosa.
Eduardo Maurício, advogado criminalista especialista em extradição, concorda com a avaliação. Esclarece que a Polícia Federal tem protocolos padronizados para admissão de estrangeiros, que podem, em tese, resultar na detenção ou até mesmo recusa de entrada, conforme o caso; no entanto, diz que os atos do gênero devem ter a devida fundamentação e considera que, se forem “em virtude de posicionamentos políticos e ideológicos”, trata-se de “ato abusivo e ilegal”.
3) Ausência de requisitos para investigar crime contra a honra
Inquirido pelo senador e ex-juiz Sergio Moro (União-PR), o diretor da PF respondeu que nunca existiu nenhuma representação de ministro do STF contra o jornalista por suas manifestações contra eles. O senador acusou ilegalidade, porque, conforme explicou, em crimes contra a honra de autoridades, a polícia só pode proceder mediante representação do ofendido (art. 145, parágrafo único, do Código Penal).
Silva concorda com a avaliação do senador: “Não cabe à polícia tomar a iniciativa de persecução[...], pois, se o atingido não se sente ofendido, não há interesse público”. Ele explica que a lei dispõe assim, inclusive, por questão lógica: “Não pode o poder público determinar em que ponto alguém está ofendendo a outra pessoa. Caso contrário, o crime deixa de ser de ação privada”.
Silva lembra ainda que, mesmo que houvesse representação de um dos ofendidos, isso poderia não ser suficiente para haver crime: “Os julgados sempre entenderam não haver dolo para o crime se se tratasse de manifestação contra pessoa pública”. O professor cita, como exemplo recente, a decisão unânime de 2021 em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) trancou inquérito criminal por crime contra a honra do então presidente Bolsonaro. O STJ citou, à época, julgado do próprio ministro Alexandre de Moraes em favor da liberdade de expressão para criticar políticos numa democracia.
Silva afirma que a recente escalada de investigações criminais por críticas a homens públicos é um fenômeno novo, que contraria o direito como vinha sendo, até então, compreendido.
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