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Aconteceu há mais de 20 anos, em Guaratuba, nas horas inaugurais de uma terça-feira de carnaval. Cansado de não pular, decidi voltar a pé do Centro da cidade, onde zumbia o trio elétrico, até minha velha casa na região da Praia Brava. Na metade do caminho, porém, tomei um susto, o primeiro da madrugada. Numa rua deserta, perto do trevo, uma caminhonete freou ao meu lado e, de cima dela, três caubóis mascarados me brindaram com uma baldada de água suja. Depois, gargalhando, viraram a esquina e sumiram.

Respirei fundo, paciência. Tirei da boca o cigarro perdido e, da bermuda, o maço encharcado. Despi a camiseta e a torci; torci o cabelo e o prendi com um elástico. Sorte estar chovendo desde domingo. Aproveitei a garoa para lavar os olhos e, resignado, retomei a caminhada, mal suportando o meu próprio cheiro.

Em casa, o segundo susto: abri o portão de madeira e dei com uma forma humana acocorada debaixo da corticeira, rente ao muro de concreto. Congelei, à espera de um ataque. Mas o que sobreveio não foi uma agressão, e sim um pedido de desculpas. Uma voz feminina, suavemente bêbada, me pedia perdão por ter invadido meu quintal. Por favor, dizia a sombra, me deixe quieta aqui, só um segundo. É claro que deixo, respondi, mas quem é você, e o que faz aí no chão?

Chorosa, a sombra não me revelou seu nome, mas contou que pouco antes brincava na Praia Central, na companhia de amigos. Pena haver bebido demais e, pior, combinado comidas perigosas. Sentindo-se desarranjada, largou a festa com certa urgência, sem avisar ninguém. Tentava alcançar o camping onde erguera sua tenda, na Rua Apucarana, quando se viu, de repente, impedida de andar, tomada de cólicas mortais.

Como minha casa, com seu muro baixo, era facílima de violar, a sombra resolveu arriscar-se. As lâmpadas apagadas, o silêncio atrás das cortinas, o mato alto, a falta de automóveis sob a coberta, tudo lhe dava a certeza de estar invadindo uma propriedade abandonada. Lamentavelmente, errou.

Disse a ela que se acalmasse: eu a deixaria à vontade. Entrei em casa e, para não expô-la ainda mais, não acendi as luzes. Da porta, perguntei à sombra se não estaria precisando de papel higiênico. Ela gemeu que sim, constrangida, e arremessei o rolo de longe, na direção do gemido. Abri um novo maço de cigarros e fumei, jogado no sofá da sala, esperando que ela terminasse o que tinha de fazer e fosse logo embora. Misturada ao chiado do mar, a remota reverberação do trio elétrico me embalava, e creio que adormeci.

Minutos mais tarde, para minha surpresa, a sombra me chamou. Já recomposta, disse que abusaria ainda mais de minha gentileza, me filando um cigarro. Sem problemas, assenti, voltando ao jardim. Mas, ao aproximar o isqueiro de seu rosto, levei o susto final: eu conhecia aquela moça. Tínhamos feito o cursinho juntos e, de vez em quando, até nos cumprimentávamos na panificadora perto do colégio.

Rimos, quem diria? No carnaval, tudo pode acontecer, ela sugeriu. Concordei, mas fiquei calado, e o papo se esgotou. Restaram apenas as ondas e um frevo distante soando entre nós. Ela lembrou que precisava dormir, não estava bem, e pôs as mãos sobre a barriga nua de menina. Eu disse que estava exausto, e que precisava de um banho, e pus os olhos naquela barriga nua de menina. Mas ela partiu, eu entrei, e nunca mais nos vimos.

De manhã, já não chovia, e os suiriris cantavam na corticeira florida. Apanhei uma pá e, rindo, me lancei ao trabalho pesado. Era preciso enterrar as reminiscências daquela noite. Se hoje tive de exumá-las, é porque nem tudo na vida de um cronista são flores e passarinhos.

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