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Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar | Roberto Custódio/JL
Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar| Foto: Roberto Custódio/JL

Para se comunicar com Deus não é preciso saber ler nem escrever, tampouco é necessário dominar a gramática para ser o interlocutor d’Ele entre os homens. Arminda e Tereza já passaram dos 80 anos, nunca pisaram numa sala de aula, não aprenderam a juntar A com B, mas sabem de coisas que só alguns poucos eleitos – cada vez mais raros – um dia saberão. Dominam um conhecimento milenar de origem ramificada, um saber que não se encontra em livros, mas que graças a elas resiste às imposições do tempo. Arminda e Tereza são benzedeiras. Para elas, há sempre uma planta e uma reza contra qualquer quebranto, mau-olhado ou distensão muscular.

Arminda Domingos tem 87 anos, 52 deles vividos em Curitiba, na mesma casa de madeira trazida da cidade de Rio Negro, divisa do Paraná com Santa Catarina. Não pôde estudar porque desde cedo o pai lhe punha a cuidar das vacas e das galinhas no sítio. Aos 35, desmanchou a casa, pôs sobre o caminhão e seguiu com o marido e o único filho para a capital. Estabeleceu-se no Xaxim e a fama de boa rezadeira cresceu junto com o bairro. O marido morreu há 15 anos e o filho foi vítima de um ataque cardíaco em agosto. Doca, como ficou conhecida, agora vive só com a neta, Marina, de 21 anos.

A casinha de 6 metros por 5, dividida ao meio por duas fileiras de tábuas, tem um vão central que expõe de um lado a sala quase sem móveis e de outro o quarto com duas camas velhas. Quando não está convalescendo de problemas pulmonares e cardíacos, passa os dias perto do fogão à lenha, no puxado que virou cozinha. Foi ali a entrevista: sentada ao lado de dois gatos, com um filhote arranhando-lhe os pés, lenço rosa na cabeça, casacão quadriculado, voz rouca e ouvidos debilitados. O corpo miúdo, 1,40 metro de altura, sente o peso da idade. "Eu tenho uma tontura que tenho que me levantá me agarrando nas parede", explica.

Agarrando-se às paredes e arrastando os chinelos no cimento bruto, vence os três degraus da escada para chegar ao altar improvisado na sala sobre a velha cômoda de compensado de fundo branco com flores azuis. Quando falta arruda, é dali que tira uma flor sob os pés da imagem de Nossa Senhora Aparecida para benzer alguma criança. Diante da imagem da santa, faz o sinal da cruz sobre a pessoa e recita uma oração para consagrá-la ao culto divino ou chamar sobre ela o favor de Deus. O ofício herdado do pai benzedor ajudou a atenuar as dores de muita gente do Xaxim e de outras regiões de Curitiba.

Muitos ainda são agradecidos pelas benções recebidas. A dona de casa Irene Sanches é vizinha dela há mais de duas décadas. Há seis anos, a filha adolescente foi levada a dois hospitais após ser picada por aranha, mas diz que só foi curada depois de benzida. Desde então, todos os dias leva uma travessa de sopa para Doca, que tem dificuldades para cozinhar. Eventualmente, outros vizinhos levam cesta básica ou alimentos avulsos. É a maneira de retribuir às benções recebidas de graça. Não muito longe dali, ainda no Xaxim, outra velha senhora ganhou a simpatia do bairro com seus benzimentos.

Bênção

Tereza Estevão Cantelli completou 81 anos no último dia 15 e mora há 30 no Xaxim, onde fez uma capela anexa à sala de estar da casa de alvenaria para atender à gente que busca ajuda. Viúva há 20 anos, baixinha, corpulenta, olhos miúdos, queixo proeminente, lenço bege na cabeça, Terezinha precisa de bengala para se locomover, mas nunca negou uma benção a quem quer que fosse e não faz distinção de cor, raça, idade ou credo. "O importante é a pessoa ter fé", diz com o terço na mão. Sem fé, a benzedura não funciona. De que livro vem tanto conhecimento, afinal?

"Senhor, eu não tenho nem um minuto de escola", salienta Terezinha. "Só aprendeu a carpir café", atesta a irmã, Antonia Fernandina Estevão, de 73 anos. Ela diz não fazer benzimentos, apenas orações. Aprendeu com as preces feitas pelo pai para proteger a criação do sítio ou algum vizinho com erisipela. Tinha já uns 30 anos, e não parou mais. A família, originária de Presidente Prudente (SP), desembarcou em Londrina dia 30 de abril de 1939, morou oito anos em Arapongas, sete em Mandaguari, mais 20 em Nova Esperança até chegar em Curitiba.

Outra benzedeira do Xaxim tem reza capaz de cruzar o Atlântico. No último dia 31 de maio, Márcio Shinji Kakinoki, 21 anos, desembarcou no Japão para trabalhar numa fábrica de macarrão. As primeiras semanas foram de saudade, angústia e um desejo incontido de voltar para casa, em Curitiba. Certo dia, a mãe, Alice Matsue Kakinoki, lembrou-se das rezas de dona Ana e, com uma foto na mão, pediu a ela uma intervenção divina em favor do filho. "Agora ele só liga para dizer que está tudo bem", diz Alice.

Famosa no bairro Xaxim, a benzedeira Ana Profetiza de Oliveira, 68 anos, já havia atendido aos apelos de outra mãe, Luíza Ueno, cujo filho também trabalhava em Chiba, no Japão, e sofria de dores na coluna. Segundo a mãe, um dia depois de cada reza Celso ligava para dizer que já estava bom. Ele acabou voltando ao Brasil, mas Luíza não tem dúvidas de que as bênções foram decisivas para o bem-estar do filho.

Falante e risonha, dona Ana ergueu uma capelinha de madeira na frente de casa. As paredes do puxadinho de 3 metros quadrados estão tomadas por cartazes de santos e prateleiras com os presentes recebidos. Natural de São João do Paraíso (MG), onde ainda menina aprendeu com a mãe o ofício do benzimento, cresceu em Cordeiros (BA), virou parteira em Ivaiporã (PR), onde cortou 22 umbigos de criança, e em 1976 acabou em Curitiba. Nunca foi à escola. Pagou "duzentos e pouco" numa Bíblia sem saber ler. "Mais óia seu minino, quem tem fé na cura de Deus não precisa lê nem escrevê."

Raridade

Analfabetas, oriundas da roça, Doca, Ana e Terezinha dominam um conhecimento transmitido há séculos de geração em geração. Surgido numa época em que o acesso à medicina era restrito, o benzimento foi muito utilizado na Europa da Idade Média e, no Brasil, surgiu a partir do século 17 das interpretações dos conhecimentos e do uso dos recursos vegetais por benzedores, raizeiros e parteiras. O triunfo da ciência a partir do século 19, com o desenvolvimento das ciências biológicas, psicológicas e sociais, reduziu a incidência das benzedeiras, xamãs, curandeiros e adivinhos. Mas não o suficiente para fazê-los desaparecer.

As benzedeiras são cada vez mais raras, mas ainda existem em cidades pequenas ou em bairros das metrópoles que guardam costumes da vida interiorana. São, em geral, mulheres idosas. Falta às novas gerações a mesma disposição para dedicar-se à arte de benzer, que requer muita dedicação ao bem estar dos outros. É preciso ter coração livre de maus sentimentos, a mente limpa de maus pensamentos, estar livre de vaidades e egoísmos e com o desejo sincero de ajudar. Não só isso, é preciso ter fé e acreditar naquilo que faz.

Enquanto a medicina busca solução biológica para uma doença, a benzedeira usam a fé para chegar ao mal no íntimo da pessoa. Ela indica o caminho, o remédio é a fé. Quando muito, receita uma garrafada de chá. Às vezes recorre a banhos, simpatias, aspersão de água benta, além de materiais simbólicos como tesouras, facas, ramas, terços, panos, agulhas. As doenças podem ser físicas (dor de dente, dor de barriga, verminoses, cobreiro, arca caída, erisipela, rendidura) ou espirituais, como quebranto, mau-olhado, encosto.

Quebranto ou mau-olhado são curados com um ramo de arruda, contra erisipela usa-se uma faca para fazer cortes no ar em forma de cruz, pouco acima da parte doente do corpo. Para "costurar" rendidura usa-se linha, agulha e um pano para dar pontos no ar. Mas se o benzimento for cobrado, a reza não é abençoada. Por isso, nunca cobram, pois não se pode cobrar pela palavra de Deus, dada a elas como um dom. Porém, não recusam alguns agrados, desde que não façam falta a quem doa e sejam ofertados de coração.

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