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Há cerca de um mês, a "971", uma daquelas muitas portarias que o governo federal assina todos os meses, tornou-se uma espécie de celebridade instantânea. Fala-se dela a torto e a direito – mal, inclusive. Graças a essa legislação, o Sistema Único de Saúde (SUS) vai passar a oferecer tratamentos de acupuntura, fitoterapia (terapia com remédios à base de plantas), termalismo (terapia a partir de águas minerais) e homeopatia, dizendo "sim" à política da Organização Mundial de Saúde (OMS) que pede a inclusão de conhecimentos tradicionais na mesma sala de espera da pediatria ou da obstetrícia, por exemplo. Mas a novidade que deveria ser uma revolução cultural está prestes a virar uma rinha de galo.

Não é de hoje que médicos das mais diversas especialidades declararam guerra a terapeutas naturistas, categoria em que se encaixam pelo menos três tipos de candidatos. Há os adeptos da cultura ocidental que passaram a sonhar com um consultório dotado de caramanchão de bambu e ideogramas nas paredes; profissionais da saúde interessados em alargar seu campo do trabalho; e secundaristas em busca de uma atividade cujos rendimentos não sejam uma agulhada na espinha no fim do mês. Esses três times se alternam nos inúmeros cursos de medicina tradicional chinesa disponíveis no estado, vários deles, ora veja, trazendo médicos em seu corpo de professores - justo os maiores opositores da moda de "medicina chinesa ao alcance de todos". É o princípio da contradição. E da confusão.

Não se sabe se esse casamento vai durar. A Portaria 971 acirrou a incompatibilidade de gênios. Desaforos não faltam. Em conversa com uma dezena de profissionais, a Gazeta do Povo ouviu que a medida do ministério é oportunista, irresponsável e eleitoreira. A estimativa é de que o Brasil tenha cerca de 10 mil acupunturistas, formados ao longo de sete anos, tempo em que a prática milenar chinesa se tornou uma especialidade. No Paraná, dados da Associação da Acupuntura apontam até 400 profissionais especializados, contra 120 alternativos. Do lado mais fraco, entende-se que a visão médica é corporativista, conservadora e "hospitalcêntrica". Mas está feito. Com a nova legislação, a acupuntura, fitoterapia e afins vão ganhar mais visibilidade, o que deve deixar os dois lados prontos para o ataque, cada qual defendendo o seu quinhão. Ou seja, as boas intenções da OMS em incentivar o "saber tradicional" deve virar conversa fiada. Parteiras, pajés e sábios vindos da China estão fora da briga. "A homeopatia era vista como charlatanismo. A acupuntura padecia do mesmo problema. Ambas envolvem um diagnóstico, uma terapia, são um ato médico. Um leigo não tem noção de anatomia. A tendência é que a acupuntura tradicional desapareça. O médico é mais indicado", opina o cirurgião plástico e acupunturista chinês Wong Shi Yee, 47 anos, contrariando as expectativas.

Por enquanto, a vantagem ainda é da medicina convencional, para a qual algumas terapias antigas já são especialidades reconhecidas, a exemplo da própria homeopatia e da acupuntura. Seria como perguntar: "A senhora prefere a parteira ou o obstetra?" Além do mais, a política de pensões e a prática da saúde centrada na figura do médico têm a força. O Ministério da Saúde sai da briga de fininho com uma carta pronta para quem procura a resposta para a pergunta que não quer calar: "Não-médicos que dominem ‘práticas integrativas e complementares’, das quais as culturas orientais fazem parte, podem ser cadastrados pelo SUS?"

A resposta é algo parecido com "talvez". O ministério não interfere em regulamentos profissionais. Se a orientação é não, é não. Mas sete categorias ligadas à área da saúde já disseram "sim" e assinaram embaixo que aceitam que seus profissionais pratiquem a acupuntura, desde que devidamente preparados para isso. A norma é que façam um curso reconhecido pelas secretarias de Estado da Educação. Em Curitiba há dois aprovados, com preferência para gente da saúde, mas nada impede a presença de aventureiros. Um dos cursos, com duração de um ano e dez meses, custa 24 parcelas de R$ 250.

Para o farmacêutico Francisco Batista Júnior, do Conselho Nacional de Saúde, é improvável que o SUS cadastre, futuramente, um acupunturista que não venha de um curso superior da área da saúde. "Há muita pressão por parte dos médicos. Não há possibilidade de que cursos técnicos sejam aprovados. Tem de ser gente formada e do ramo", explica.

A notícia de que o jogo está virando para os técnicos, contudo, se tornou um rastilho de pólvora. Quando a 971 for regulamentada e recursos do SUS pingarem nos estados e municípios, fisioterapeutas, farmacêuticos e enfermeiros vão dividir o bolo da menina dos olhos em que se tornou a medicina chinesa. Cursos preparatórios pipocam aqui e ali e, como era de se esperar, há secundaristas torcendo para que se abram as portas da esperança. Há muita gente no páreo. Que vença o melhor.

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