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“A maioria dos índios que vêm para centros urbanos está sendo expulsa de suas aldeias. E muitos deles acabam virando mais um favelado na cidade.” | Henry Milleo/Gazeta do Povo
“A maioria dos índios que vêm para centros urbanos está sendo expulsa de suas aldeias. E muitos deles acabam virando mais um favelado na cidade.”| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Em 1910, o marechal Cândido Rondon criou e organizou o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), um marco na política indigenista no Brasil. Mais tarde, já nos anos 60, a entidade foi substituída pela Fundação Nacional do Índio (Funai), até hoje responsável por zelar e garantir os direitos dos povos indígenas brasileiros. Cem anos depois, a situação dos índios no país melhorou, mas ainda "falta civilização e educação na sociedade brasileira", segundo Álvaro Fernandes Sampaio, conhecido por Álvaro Tukano, um dos maiores intelectuais indígenas da atualidade e representante da etnia Tucano, da Amazônia.

De passagem por Curitiba para participar do seminário "Direitos, Culturas e Conflitos Territoriais na Amazônia", Sampaio é duro ao criticar a tutela do Estado e defender a necessidade de uma maior autodeterminação dos índios. "Ficam decidindo por nós o nosso futuro. Vou fazer 58 anos agora mas, para o Estado, sou tutelado, um débil mental. Na minha comunidade, sou uma liderança. Mas quando venho para essa sociedade sou pior que cachorro", afirma. Acom­panhe os principais trechos da entrevista:

Qual sua avaliação sobre o movimento indígena hoje?

Está muito melhor. Con­tinuamos defendendo os direitos coletivos e ambientais do nosso povo. Por outro lado, muitas vezes não participamos de discussões como os projetos desenvolvimentistas na Ama­zônia e isso traz problemas para os índios. Grandes empresas estão devastando o nosso país e tem quem fique achando que isso é uma maravilha. Para nós isso é muita malandragem. Isso afeta qualquer índio, mesmo o que esteja mais isolado. Isso nós não podemos aceitar. Tivemos avanços sim, mas é ruim quando leis tão bonitas não são praticadas por nossos governantes. É importante dizer que os índios da Região Sul têm sido uma organização muito forte, coerente. Eles têm sido exemplo de resistência do movimento indígena. São índios mais politizados. Caigangues e guaranis tiram nota 10. Nós tiramos o chapéu para eles.

E sobre o trabalho da Funai?

Fui demitido da Funai em fevereiro deste ano por não concordar com o presidente [Márcio Meira]. Ele fica fugindo das lideranças indígenas, tem colocado polícia na porta dos escritórios da Funai. Ele mandou a polícia tirar à pancada os índios que estavam na Esplanada dos Ministérios. Temos sido discriminados de todas as formas. A Funai tem um papel superimportante, mas ela não está cumprindo. Deveríamos estar alegres e não estar enfrentando a polícia.

A qualidade de vida dos índios melhorou?

Uns têm terra demarcada, sem garimpeiro, sem invasor. Eles têm uma qualidade de vida boa, mantendo suas tradições. Outros continuam enfrentando garimpeiros. O território ianomâmi, por exemplo, continua cheio de garimpos. Lá não tem ninguém do Instituto Chico Mendes e nem dessa polícia que fica defendendo os escritórios da Funai. Não tem nem polícia nos 150 quilômetros de fronteiras para combater os traficantes. Esses mesmos garimpeiros e madeireiros que invadem nossas terras são uma ameaça aos índios isolados. Temos na Amazônia pelo menos 156 índios em situação de isolamento. Eu venho da fronteira com a Colômbia e a Venezuela, na região do Pico da Neblina. Lá tem índios isolados que são ameaçados por garimpeiros, madeireiros. A maioria dos índios que vêm para centros urbanos está sendo expulsa de suas aldeias. E muitos deles acabam virando um problema social, virando mais um favelado na cidade. Felizmente, temos outros índios que estão vindo em busca de estudos. Eles estão nas faculdades e são nossos porta-vozes. Torcemos para que eles voltem para nossas comunidades para que possamos, se Deus quiser, ter uma nova visão, um diálogo mais equilibrado.

O ano passado foi marcado por ocupações em escritórios da Funai e da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) em todo o país. Como o senhor avalia esse movimento?

Os índios contrários à reestruturação da Funai, de fato, foram para a rua. Apanharam da polícia. Em Brasília, enfrentaram mais de mil policiais, cavalos, escudos, gás lacrimogenio. Neste governo, às vezes, temos sido mal tratados. O que queríamos era participar da reestruturação da Funai e não houve, de fato, uma consulta às bases. Foi feita somente uma discussão com meia dúzia de índios que não representam os nossos interesses reais, não sabem das necessidades que estamos passando. Mas a culpa não é de nossas lideranças. A culpa é dos dirigentes nacionais da Comissão Nacional de Política Indigenista, que é presidida pelo presidente da Funai. Ele diz em Washigton, em Genebra, que a situação do índio brasileiro está uma maravilha, mas isso não é verdade. Temos uma verba de mais ou menos R$ 725 milhões para todos os indígenas, mas esse dinheiro é usado mais para gastar com as diárias dos representantes da comissão da Funai. Eles fazem farra em troca de nossa miséria. É isso que não estamos gostando.

Como está o ritmo de demarcações homologadas?

O ministro da Justiça diz que vai parar de demarcar as terras indígenas. Mas o ministro é mutável, é passageiro. Ele é burocrata. O que nós defendemos é a Constituição. E, ao nosso modo de ver, o governo vai demarcar as terras indígenas, porque somente a demarcação traz equilíbrio ao meio ambiente. Apesar de poucas, as terras indígenas homologadas e demarcadas são as únicas reservas onde não são feitos estudos transgênicos.

Há algo para comemorar em cem anos de política indigenista no Brasil?

Sim. Tivemos a Constituição e muitos avanços nas instâncias internacionais, com a declaração dos direitos dos povos indígenas. Temos a Convenção 169 da OIT [Organização In­­ternacional do Trabalho], que trata de assuntos indígenas e o Brasil é signatário. Além disso, muitas terras foram demarcadas. Hoje ocupamos 12% do território nacional e continuamos falando as nossas línguas. Nós confiamos nesse país, mas temos que continuar refletindo e exigindo de nossos governantes.

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