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"Zulmira, você está assim ó, acima do céu." Com essa tirada, o escultor Oswald Lopes, professor da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap) nos idos de 50, colocou a zeladora Zulmira Vergés da Costa no seu devido lugar – do céu para cima. A frase, dita depois de um entrevero à toa, resume bem a importância dada à funcionária que há 55 anos ocupa o mesmo posto na instituição. Isso mesmo – faz mais de meio século que a Belas, no Centro de Curitiba, tem a mesma zeladora. E ela dorme no emprego.

Sua casa – uma meia-água de 40 metros quadrados espremida nos fundos da sede da escola, na Rua Emiliano Perneta – está bem longe do céu invocado por Lopes. Para quem passa no pequeno pátio que liga as duas edificações o que se vê é uma porta estreita, atrás da qual bem podia se esconder um almoxarifado. Mas ali é o endereço de Zulmira desde 1951. Quase não bate sol, os canos do banheiro passam por baixo do assoalho, e como vivem avariados, submetem as narinas da veterana a uma sessão diária de tortura. "Tudo bem. Já estou curtida", desconversa.

Para Zulmira, 82 anos, o problema do encanamento é de menos. O mais difícil é arrumar as malas e se despedir de vez do local em que criou os três filhos e onde conheceu "uma gente esquisita e divertida", como define os artistas que povoam suas lembranças. Ela fala de Guido Viaro, Kurt Freyesleben, Estanislau Traple e Erbo Stenzel – já devidamente instalados no andar de cima – como se tivessem acabado de filar um dos famosos cafezinhos que prepara. "Sempre fui muito bem-tratada aqui", repete a mulher que sem nunca ter pintado um quadro ou tocado uma peça ao piano entrou para a galeria dos ilustres da mais importante escola de artes do Sul do país. Sua obra – a hospitalidade.

A história de Zulmira com a Embap começou por linhas tortas. Aos 28 anos, com o marido desenganado "dos pulmões" e três filhos pequenos – Celso, Cionete e Célia –, pediu ajuda a uma amiga, Isabel, para arrumar um emprego. Até então, tinha estagiado na Companhia de Força e Luz – onde aprendeu com o negro Fritz as manhas para passar um bom café. Era a que se resumia seu currículo quando pediu um servicinho na Belas ao pintor Guido Viaro. "Se eu gostar do teu trabalho, cola", teria dito o italiano, que insatisfeito com os préstimos de Isabel decidiu experimentar os da conhecida.

"Eu colei", brinca a zeladora, que logo depois enviuvou e se mudou para a Emiliano com sua pequena tropa. A rotina, dali em diante, seria manter as salas em ordem e encher cerca de 14 garrafas de café por dia. Enquanto isso, lá fora Bento Munhoz da Rocha virava o Paraná do avesso, Getúlio Vargas voltava ao poder, Perón se reelegia presidente da Argentina, morriam o escritor André Gide, o filósofo Ludwig Wittgenstein e o compositor Arnold Schoenberg: 1951 foi um ano estressante. Mas essa prosa não chegou até ela – sempre às voltas com cafeinômanos atrás de um gole clandestino. De um dos surrupiadores, não esquece. Em 1958, Estanislau Traple implorou um benefício extraclasse alegando estar com gosto de guarda-chuva na boca. Morreu no dia seguinte – mas sem passar vontade.

A propósito, Zulmira perdeu a conta dos velórios de professores a que compareceu. "Morreu quase todo mundo", fecha a conta. Alguns se foram não sem antes presenteá-la com telas. De Viaro tem um vaso de flor. Melhor do que ganhar quadros são as surpresas, algo como ver o pintor Juarez Machado, de polainas, meter o nariz na porta, vindo diretamente de Paris. A popularidade de Zulmira é tamanha que um dos diretores da escola, João Jacob Beda, decidiu batizar um canto com o nome dela. "Tem gente que vê a placa e pergunta se eu ainda estou viva."

Vivíssima. Às 6h15 começa o ritual do café, passado no coador de pano. Depois, cruza o soturno corredor de madeira por onde, dizem, de madrugada dá para ouvir os passos de Freyesleben. Mas Zulmira o descredencia para o posto de fantasma da velha casa. "Se andasse por aqui, viria falar comigo, correto?" Sem Freyes à vista, ela faz o de sempre – vence o corredor, a escadinha de madeira que range, o hall e abre o cadeado. Não demora muito e tem música no ar, cheiro de terebentina e aroma de café. Bem-vindo à Belas Artes.

"Ela já faz parte do acervo", decreta a diretora Ana Maria Feijó. Só não se sabe até quando. A família – formada por 12 netos e 13 bisnetos – quer levar Zulmira para a casa que ela tem no Cajuru. Está em dias de aproveitar a aposentadoria, que subiu de R$ 400 para R$ 1 mil. Na Embap, a torcida é do contra, já que muitos não dispensam uma conversa fiada com a dona de uma história cujos figurantes são figuraços. "O Ivens (Fontoura) a gente via que ia ser famoso. O (Fernando) Calderari e o João (Osório Brzezinski) também", comenta, enquanto olha com pouco caso para um programa de tevê que faz fofoca sobre quantas vezes Reginaldo Faria já se casou.

Zulmira conviveu com tanta gente interessante que nem suas próprias memórias importam. O pai, George Vergés, veio moço da França, e ela nem imagina o que o trouxe tão longe. Depois veio o casamento, os filhos, a morte prematura do marido João e aquela conversa estranha de "cola, não cola." Tudo acabou bem. Pena Viaro não ter pintado o retrato de Zulmira Vergés da Costa. Teria sido perfeito.

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