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Anair Cândida da Silva, 38 anos, cata papel pelas bandas das Mercês, Alto da XV e Bom Retiro. Calcula ter carregado até 400 quilos de reciclados de uma só vez nos dez quilômetros diários de lida – o que faz dela uma recordista. É o dobro do que a maioria dos carrinheiros costuma, em média, dar conta. Mesmo assim, não pensa em outra vida. Já trabalhou como diarista, camareira, auxiliar de cozinha e ambulante. Há quatro anos, vendia tranças de alho nos sinaleiros quando recebeu o convite para puxar carrinho, ganhando em troca um quartinho no depósito de lixo, comida e participação nos lucros. Seus olhos muito verdes faiscaram. Negócio fechado. Ia poder guardar o dinheiro da condução diária até o Parque São Jorge, em Almirante Tamandaré, onde mora com nove filhos.

A depender dos esforços de organizações não-governamentais e da prefeitura, trajetórias como a de Anair devem ultrapassar a categoria "história tocante" e se converter em fonte para um estudo inédito sobre a vida carrinheira em Curitiba e região metropolitana. Já passa da hora. A última pesquisa – uma iniciativa da Secretaria Municipal de Meio Ambiente – é de 2000, quando havia cerca de 3 mil catadores de papel na capital. Hoje, o tamanho do exército de catadores é uma incógnita, mas deve se aproximar de 10 mil pessoas, de acordo com cálculo do Instituto Lixo e Cidadania. Delas depende 90% do lixo seco recolhido na capital. À revelia do caos que uma improvável greve de carrinheiros poderia ocasionar, sabe-se pouco sobre quem garante à cidade o maior índice nacional de reciclagem.

A ausência de dados frescos tem uma explicação: os carrinheiros ainda não são vistos como um grupo social concreto e a economia que geram é nebulosa, tamanho o número de atravessadores que se apropriam do saldo final de suas andanças. Mas qualquer técnico que os acompanhe, seja da Secretaria do Meio Ambiente, da Fundação de Ação Social ou de uma ONG, sabe que em torno do lixo se formou uma teia de relações capaz de explicar mecanismos como a exclusão, a miséria e a informalidade – para citar três dramas brasileiros do qual participam em papel de destaque.

A própria Anair é uma prova de que por trás de um carrinho não se esconde apenas uma desempregada fazendo bico, mas alguém que optou pela rua. "Gosto de povo. Sou conversadeira. Até o pessoal da Cavo me repassa material", debocha a mulher que faz carreira no ofício. Hoje, Anair não mora mais no barracão e volta toda noite para Almirante Tamandaré. Seus rendimentos podem chegar a R$ 800 por mês, o equivalente ao que ganharia como diarista, mas sem um benefício do qual não abre mão: "Eu não tenho patrão, eu tenho liberdade", dispara.

Tão livre que se tornou uma militante da causa carrinheira. Desde 2004, participa de uma cooperativa, a Lixo e Vida, instalada num cruzamento escondido entre a Federação das Indústrias do Paraná (Fiep) e a BR-476. Em meados do ano passado, participou em Brasília de um encontro nacional de economia solidária. Carrega os anais do congresso na bolsa. E entre um e outro artigo sobre a "revolução papeleira", mostra fotos dos participantes do evento – incluindo as suas. Mas ela é exceção.

Investigação

A ONG Lixo e Cidadania tenta responder por que cargas d’água os carrinheiros se colocam atrás do carrinho e decidem assim permanecer, resistindo a qualquer proposta de organização. É certo que a maioria passou parte da vida patinando no mercado de trabalho até desembarcar numa atividade que, mesmo não sendo um mar de rosas, consideram a melhor experiência profissional que já tiveram. Não é raro ouvir deles elogios à informalidade, mesmo ao preço de uma tarefa que exige físico de atleta, traz rendimentos que mal pagam as refeições do dia, obedece horários ingratos e ainda é vista com rabo-de-olho por parte da sociedade, à revelia do bem que lhe faz.

O primeiro instrumento usado pela ONG na investigação é a própria fala dos catadores. Desde sua fundação, em 2002, a Lixo e Cidadania se tornou uma espécie de lugar de passagem para eles. A pedagoga Sueli Elizabeth Westarb, coordenadora do projeto, estima que cerca de 400 catadores de papel circulem por ali a cada mês. Os motivos são vários – conhecer o laboratório de cooperativa desenvolvido junto à associação Lixo e Vida, que funciona no terreno ao lado – participar de cursos de formação, reuniões da categoria ou quebrar um galho. É corriqueiro cruzar com papeleiros às voltas com parentes doentes, empepinados com o aluguel ou atrás de informações sobre creche para os filhos. O que parece confusão é um banco de dados.

Ocorre que a Lixo acabou se tornando uma fonte privilegiada para entender não só a reciclagem, mas a dinâmica da pobreza e do emprego numa grande cidade. Não é premeditado afirmar que a possibilidade, diante da falta de dinheiro, de catar um carrinho e sair por aí, virou uma tática quase banal entre os empobrecidos. Há quem, inclusive, já utilize veículos motorizados para o serviço. É uma população flutuante – o que tende a frustrar muitas iniciativas sociais.

A instabilidade dos números levou o instituto a aplicar um questionário de 50 perguntas, já respondido por 386 catadores, mas ainda inconcluso. As questões passam pela cor da pele, situação familiar, grau de instrução, tipo de residência, mas também investigam quem vai ao dentista, se fuma e bebe, como se locomove e o que pensa da própria condição, entre outros aspectos que devem radiografar o modus vivendi da turma do carrinho.

Não é pouco. Carrinheiros não só se multiplicam. Eles desenvolvem uma cultura à parte. Para quem está preso no trânsito e os vê passar com um castelo de papel, chegou a hora de aposentar a idéia de que são todos iguais. Quem os conduz pode ser gente como Anair – gente que não é um número a mais.

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