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Crianças brincam no barracão em ruínas onde os pais têm de pagar por um espaço para morar e guardar o lixo | Albari Rosa/ Gazeta do Povo
Crianças brincam no barracão em ruínas onde os pais têm de pagar por um espaço para morar e guardar o lixo| Foto: Albari Rosa/ Gazeta do Povo

As novas senzalas

A primeira impressão é de escombros de fim de guerra. O barracão em ruínas avança 50 metros para os fundos e 50 para os lados, entremeado por três grandes vãos longitudinais separados por paredes in­­ternas. Telhado quase não há, e o sol se debruça sobre as crianças que jogam bets, pés metidos na poça d’água pútrida onde boia uma ratazana morta. Uma quase matilha de cães vulgares, fustigada pela fome, vaga alheia ao vaivém da bolinha rebatida em voleio pela menina que oscila com a ripa numa mão e um bebê na outra. Ao fundo, para onde se olha há lixo. Sobre as pilhas de entulhos, ho­­mens, mulheres e crianças tiram dali o que comer.

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O saber reciclado

Ao nos depararmos com um grupo de carrinheiros conversando sobre lixo reciclável, devemos ficar atentos para a possibilidade de eles saberem mais do que nós. Se sabem o valor dos resíduos, se sabem separá-los, se sabem quanto vale cada produto, não podem ser ignorantes. O que lhes falta é um saber sistematizado, diria o pedagogo Paulo Freire. Para ele, todo saber traz consigo sua própria superação, não há saber nem ignorância absoluta. "Há somente uma relativização do saber ou da ignorância", conclui.

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  • Cortiço onde até dez famílias vivem em cubículos de seis metros quadrados
  • Escada ao lado do depósito de lixo que dá acesso ao cortiço
  • Rubens no barracão invadido onde aluga espaço para carrinheiros
  • Polaco ao lado da balança usada para pesar o material reciclável que compra dos coletores

Jesus recém conta 27 anos e desde os 16 consome os dias atrás de restos para reciclar, vivendo a enganosa esperança de melhor sorte. Entrou nesse negócio por necessidade e agora se vê compelido a entregar-se a uma relação de dominação, posto no lado mais fraco. Está submetido a um regime de servidão, preso a dívidas espúrias, atado feito mula ao cabresto de um carrinho de lixo reciclável. Esse trabalho desde sempre lhe causou indescritível mal-estar, menos pela atividade em si e mais pela forma como é tratado, mas, às voltas com a despensa vazia, alguém precisa suprir as carências da mulher e dos três filhos.

O pobre chegou a suspeitar das imposições do patrão, mas, embora contrariado, sentindo-se vítima de chantagem, não lhe ocorreu outra alternativa. No começo o homem se fez de benfeitor, deu moradia com água e luz nos fundos de um depósito clandestino de lixo reciclável na favela. Mas os dias foram ficando difíceis, e o preço pago por esse cubículo de seis metros quadrados foi a própria liberdade. A ga­­nância do senhorio e a sequência diária de reprimendas mexem com os nervos, numa tensão permanente e cumulativa. Jesus é forçado a repassar tudo o que recolhe a um valor muito abaixo do que vale. E ele não está só.

Barracões suspeitos se multiplicam nas favelas e periferias de Curitiba, abarrotados de coletores em regime de servidão, a maioria sem se dar conta disso. Quanto mais se mergulha nas profundezas desse submundo, mais violentos os senhores do lixo, mais aprisionados os coletores, mais desumana as relações de trabalho. A retenção dos documentos pessoais, o atrelamento a um só patrão, o aluguel do carrinho, as ameaças de morte, tudo contribui para fazer dessa gente escravos do lixo. E não se trata de metáfora. Nos depósitos clandestinos, hospedagem e carrinho são dívidas pagas às custas de muito trabalho, caso de Jesus.

Mal versado nas letras, sem histórico escolar, ele cresceu atirado na espiral da miséria fisiológica. Há 15 anos o pai fugiu da escassez da lavoura em Candói, região central do Paraná, mas a sorte não compareceu. Morreu há seis anos na Curitiba do subemprego e da periferia, mais de desgosto que da cirrose. Sozinho, Jesus não deu conta do aluguel do casebre na Vila Guaíra, na zona sul. Levou mulher e filho para a favela do Parolin, onde diziam haver emprego e moradia. Teria um teto para a família e um carrinho para trabalhar. Os documentos ficariam retidos como garantia e a coleta seria toda do patrão, pelo preço que ele quisesse pagar.

Sem opção, era pegar ou largar. Viveu essa rotina por dois anos e meio, tempo em que nasceram mais dois filhos. Jesus achou novo patrão, a mulher ajudava na renda como lavadeira. Saiam-se bem, mas o tom das ameaças subiu e o senhorio passou a estabelecer cotas mínimas de coleta, aumentando à medida que ele atingia a meta, até forçar a mulher a ir junto para as ruas. Hoje, Jesus está com o terceiro patrão, sem encontrar diferença entre eles. Descobriu se tratar de uma regra nesse meio. Não à toa, reina entre os carrinheiros uma atmosfera de silêncio, medo, desconfiança e conformismo.

Sina de servo

Medo, desconfiança e conformismo também permeiam as falas de Lourival, sujeito cuja vida se pauta pela falta de juízo e pelo destino incerto. Mal a família trocou Antonina por Curitiba, fugiu de casa aos 10 anos, passou a catar lixo reciclável e engraxar sapatos, morando sob marquises e viadutos. Aos 15 trocou a liberdade das ruas por um carrinho e um teto num depósito de lixo. Aos 18 mudou de patrão, não de sina. Casou em 1983, aos 23 anos, teve dois filhos. Dez anos mais tarde, largou a mulher e ganhou o mundo. Foi dar em Londrina, onde um agenciador o contratou para trabalhar na colheita de café em Serrania, Minas Gerais. O emprego era na verdade um logro.

Lourival já chegou endividado, sujeitado aos preços que lhe impunham pela comida, instalado numa quase pocilga. Emendou colheitas de algodão, milho, feijão, corte de pinus, sempre em condições análogas à escravidão. De volta a Curitiba, sossegou em 1998, ao conhecer a atual mulher, com quem teve mais três filhos. Voltou à coleta de recicláveis, no mesmo antigo sistema de servidão. Ser escravo parecia o destino de Lourival, até conseguir se livrar do último atravessador, há dois anos, e passou a trabalhar consorciado a mais três coletores num barraco alugado numa favela perto do centro da cidade.

A jornada diária de 20 quilômetros à frente de um carrinho com 300 quilos de lixo se estende das 6 da manhã às 10 da noite, tudo por míseros 15 ou 20 reais. Para conhecer os motivos que os empurra nessa cruzada exaustiva, e todo o custo que ela traz consigo, é preciso compreender seu entorno. Desemprego, miséria, baixo grau de alfabetização e especialização alimentam o fluxo incessante de carrinheiros nas ruas das grandes cidades. A coleta de recicláveis tornou-se oportunidade de fonte regular de renda a uma gente excluída do mercado formal de trabalho. Para muitos, é a primeira atividade remunerada – e possivelmente a única por toda a vida.

Sozinhos eles são alvo de exploração, mas resistem a se organizar. Preferem a liberdade de não ter patrão, nem horários e regras, além de receber diariamente pelo serviço, mesmo que na medida insuficiente para constituir patrimônio e garantir o sustento. Essa opção os leva a quatro formas de vínculo com o atravessador: 1) independente, o coletor que vende a quem quiser por ter carrinho e local para morar; 2) dependência parcial, quem pegou carrinho em comodato e é obrigado a vender a um só depósito; 3) dependência, aquele que tem carrinho mas mora no depósito; 4) dependência total, o catador que precisa tanto da moradia quanto do carrinho.

Os feitores

Estudo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) concluiu em 1996 que quatro entre dez coletores de Curitiba viviam no estágio máximo de dependência. Nada revolucionário aconteceu desde então para mudar o cenário, e as condições se perpetuam. Por essa perspectiva, no pior dos cenários a servidão alcançaria hoje quatro mil dos dez mil carrinheiros da capital. Mesmo se o mal tivesse sido reduzido pela me­­tade, ou, ainda, à metade da metade, a existência de uns mil coletores em regime de servidão não é algo a se comemorar. Ainda que não se queira admitir ou enxergá-los, eles existem. E são muitos, como revela o cotidiano das ruas.

O problema é que, quando rompem a cortina da invisibilidade, os coletores são tidos apenas como estorvo na paisagem urbana. Não só isso os fazem invisíveis. Do tipo discreto, os feitores de escravos agem de forma a acobertar o negócio sujo em lugares distantes das vistas, geralmente no interior de favelas. Muitas vezes não estão sozinhos nessa tarefa nem são os únicos beneficiados. Há os que firmam compromisso com os patrões locais do tráfico de drogas e aos que ainda têm dúvidas do seu poder, põem os lacaios para vigiar. Essa fluída relação entre iguais sempre permite que saiam folgados dos apertos. A fauna é das mais variadas.

Os patrões do lixo guardam os assombros de senhorio detrás das feições de benfeitor. O sentimento por eles despertado é dúbio, isso porque os maus procuram se assemelhar aos bons. Os de pior estirpe são capazes de evocar imagens de puro efeito estético, tal senhores de engenho com chicote à mão. Não são exatamente o que se pode chamar de pessoas dignas ou honradas. A conduta seguida para lograr tal êxito os levou à expulsão do rol de homens honestos, uma desonra que, sob a perspectiva de alguém que em seu interior abriga o único e exclusivo propósito de acumular bens, ainda que às custas de uma gente sofrida, nada significa.

Afeitos a argúcias frívolas e sutis, enfim, tudo o que compõe a ma­lícia da escola da malandragem, parecem transitar no limite entre a transgressão das normas e a delinquência, mas há os que ultrapassam essa linha imaginária. Nesses, os métodos para ganhar dinheiro excitam a propensão ao escravagismo. Eles põem na balança os benefícios do lucro fácil, o custo moral de suas ações, as possíveis sanções legais, e decidem correr o risco. Parecem crer que a recompensa excede os ga­nhos caso empenhassem seu tempo e suas habilidades em ou­tros negócios. O custo-benefício, portanto, parece-lhes favorável.

Isentos de remorso, não temem maledicências, nem são atormentados pela consciência, convencidos que estão da naturalidade de seus atos. Estão limpos, portanto, para toda sorte de novas más ações. Conscientes do poder exercido, convictos da inferioridade intrínseca dos demais, revelam-se hábeis em manipulações e abrem vantagem ao induzi-los a acreditar que lhes prestam um favor. Assim, forçosamente mergulhados dentro de um sistema opressor e esmagados por sua condição inferior, os coletores submetem-se a uma posição subalterna e, reduzidos a servos, passam eles também a considerar tudo muito natural.

Com efeito, trata-se de problema sério, pois nessa lógica obliqua o atravessador é ao mesmo tempo depositário de toda confiança e de toda suspeita. "Para muitos catadores, o seu ‘algoz’ também é seu ponto de referência", diz o psicólogo Allan Rodrigues Dias no mestrado pela Universidade de São Paulo (USP), de 2002. A forma mais cruel de reprodução das relações de dominação se dá entre os ex-catadores que viraram atravessadores, conforme Dias observou em 18 meses de estágio na Fundação de Ação Social de Curitiba e mais tarde durante um ano num projeto de extensão da UFPR.

Rubens Mendes Ferreira e José Roberto Pereira Júnior, o Polaco, são exemplos de quão difusa pode ser a relação de dominação entre carrinheiro e atravessador. Rubens já não é novo, vai nos 53, e não faz sombra ao guri franzino que aos 13 começou a puxar carrinho de lixo na Vila das Torres. Há 24 anos mantém na favela um barracão para prensar reciclados e há sete explora catadores nas ruínas de uma indústria falida de vidros, no anel central de Curitiba. Polaco foi coletor de lixo em Porto Alegre e Curitiba, onde agora mantém uma espelunca que abriga dez famílias de carrinheiros na favela da Vila das Torres.

Equívoco histórico

A relação escravagista nesse meio vem desde a primeira tentativa de se regulamentar a destinação do lixo no país, na São Paulo de 1720, quando o conceito de imundície resumia-se a ervas, matos e excremento animal. Limpeza geral, só por ocasião de festas e procissões, trabalho para escravos e presos condenados às galés, em geral pretos. O preconceito envolvia atividades consideradas mais aviltantes, como lavar roupas, dispor do lixo, buscar água nas fontes. "Eram funções geralmente desincumbidas por negras ou mulatas forras", diz o historiador Ernani da Silva Bruno em História e Tradições da Cidade de São Paulo (Editora Hucitec, 1984).

Para a doutora em História Rosana Miziara, na realidade a necessidade de limpeza das ruas apoiava-se mais em valores morais e intenções punitivas do que num ideário sanitário. A tarefa de recolher as sujeiras era para os excluídos da sociedade: os presos, negros e mulatas alforiadas, esses também vinculados à imagem de dejeto. A julgar pela forma como são tratadas hoje as pessoas que vivem do lixo, não houve muitas mudanças. Essa gente cumpre seu ritual diário, sem lampejos de impaciência apesar das restrições que se fazem ouvir pelas janelas dos carros, em geral insultos e agressões verbais pelo estorvo no trânsito.

Assim se transfere também aos catadores o valor negativo atribuído ao lixo, como algo sujo, inútil, próprio de descarte, do qual a sociedade está disposta a pagar para ficar longe. Talvez daí o pouco caso com o que acontece ou deixa de acontecer com Jesus e sua gente, minando-lhes o que resta de autoestima. Eles dispensam o sentimento de desdenhosa comiseração. Respeito estaria de bom tamanho.

Os nomes dos coletores foram trocados por motivo de segurança.

Leia amanhã: A arte de enterrar dinheiro

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