• Carregando...
 | Alexandre Mazzo/ Gazeta do Povo
| Foto: Alexandre Mazzo/ Gazeta do Povo

O sociólogo Pedro Bodê, 50 anos, coordenador do Grupo de Estudos da Violência da Universidade Federal do Paraná (UFPR), não consegue se desvencilhar de duas lembranças de infância.

>> Veja as sugestões de filmes indicados por Pedro Bodê

>> Veja bastidores e ensaio da entrevista com Pedro Bodê

A primeira, os cadáveres que volta e meia apareciam pelas calçadas de São João do Meriti, Baixada Fluminense, um dos municípios mais violentos do país. A segunda, a obsessão pela obra de Monteiro Lobato, paixão que começou com a coleção completa do Sítio do Pica-Pau Amarelo adquirida pelo pai em prestações.

Da convivência com a violência em São João do Meriti nasceu a inquietação para transformar a segurança pública no foco de suas pesquisas. Da alfabetização nos livros do Sítio ainda vem o brilho nos olhos cada vez que discorre sobre o pai de Emília.

Há 19 anos morando em Curitiba, Bodê se transformou em uma das principais referências no estudo de segurança pública no Paraná. E entre suas defesas, está a de que as drogas não são a principal causa de violência no país, mas sim o efeito mais nefasto do fracasso das políticas públicas.

Ter passado a infância em uma área violenta foi determinante em sua escolha profissional?

Onde eu morava havia um dos grupos de extermínio mais antigos do Rio. Ali estavam pessoas criadas comigo. Ainda criança, vi muitos corpos alvos de extermínio. Eu tinha proximidade com a violência no cotidiano e queria entender o que estava acontecendo.

Por que se mudou para Curitiba?

Muito por acaso. Não vim para ficar. Estava passando por mudanças pessoais, um pouco de saco cheio do Rio, das grandes cidades. Quando voltei, descobri que não queria mais morar lá. Fiz concurso em 1992 na Federal e me fixei aqui. Nesses quase 20 anos, Curitiba mudou muito...

... se transformou naquilo que o senhor não queria: uma cidade grande...

Acho complicado dizer que Curitiba se transformou em uma cidade grande, nos modelos do Rio e São Paulo. Temos aqui um processo de ocupação diferente, até pelo fato de ser uma cidade em que o pico de crescimento se deu com algumas regras. Mas, é claro, o perfil mudou.

Na capital, são mais de 40 vítimas de homicídio por semana ...

É muito preocupante. Houve graves problemas na condução da segurança pública, já que a produção da sensação de segurança é um efeito de condições gerais de bem-estar, como existência de empregos, acesso à saúde e educação... A polícia deveria agir somente quando as coisas escapassem da normalidade. A situação também está relacionada à falta de profissionalização das polícias, à alta taxa de encarceramento e à morosidade da Justiça. No caso do Paraná, temos um complicador, que é a fronteira.

O senhor acha que a hierarquia das polícias brasileiras está errada?

A estrutura das polícias brasileiras não é moderna. Temos duas ? a Civil e a Militar ?, que atuam com a mesma base territorial. Teoricamente uma faz a parte ostensiva e a outra investigação. Na prática, as duas fazem as mesmas coisas, mas os ciclos de cada uma são incompletos, diferentemente do que ocorre em outros países. No caso da PM, temos um agravante: seu modelo reproduz o sistema do Exército, que é treinado para guerra e não para mediação de conflitos.

Em que ponto estamos da cultura do medo?

O medo generalizado funciona como um controle social perverso. A população se isola, torna-se cada vez mais fragilizada, infantilizada e incapaz de resolver seus problemas. Em função do medo se aceita até a violação de direitos. Confunde-se causa e efeito. Achamos, por exemplo, que as drogas são a causa, quando na verdade são o efeito da proibição.

As drogas deveriam ser liberadas?

Essa discussão não é simples. Como funcionaria? Libera-se o consumo? E a produção, como fica? De qualquer maneira, as pessoas usam drogas para se divertir ou porque estão doentes... Acho que devemos regulamentar o uso. É evidente que não se pode, assim como com o álcool, fumar maconha e estudar, fumar maconha e dirigir. Há um conjunto de impedimentos. Não se trata apenas de liberar, mas de um processo que deve ser discutido coletivamente, com cabeça fria, sem essa cultura do medo, do pânico e do terror.

A guerra contra as drogas é desnecessária?

É ineficaz. Nos últimos 30 anos se estabeleceu uma relação inversamente proporcional, em que os investimentos na repressão aumentaram 80% e o custo das drogas diminuiu 80%. Havia e há a ideia de que atacar a produção aumenta o preço e o consumo cai. Mas o que aconteceu foi que começou a se produzir drogas mais baratas, sintéticas. Essa é uma regra dos anos 70. Desde aquela época já se sabia que uma droga pesada é substituída por outra mais pesada, mais barata e mais nociva, como o crack.

O pior produto dessa repressão é o crack?

Sim. Essa repressão toda foi tão ineficaz que produziu uma droga mais barata, mais letal e mais degradante na forma como é consumida socialmente. Dia desses, o doutor Bessa (Marco Antônio, médico psiquiatra, referência no tratamento de dependência química no Paraná) fez um comentário que me deixou assustado. Ele comparou as cracolândias a grupos de leprosos da Idade Média, o que é verdade. São farrapos humanos.

O modelo de Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, implantado no Rio, pode ser replicado no país?

A ideia das UPPs não é nova. O que se vê agora é uma reedição. Mas é bom que se deixe claro que, sem mudar a característica da polícia, não é possível fazer policiamento em proximidade. Além disso, temos inúmeras atividades nos morros que estão sendo desenvolvidas pelas Forças Armadas, um grave retrocesso político e democrático. Todo mundo está batendo palmas, porque acha que vai resolver o problema.

E o problema não se resolve...

O que está se criando no Rio é uma espécie de corredor de segurança onde vai acontecer a Copa e Jogos Olímpicos. Mas se não se combater a corrupção, com participação das polícias, vai haver migração do crime, o que, aliás, já está acontecendo. O tráfico não vai acabar nessas regiões. Talvez parta para o modelo paulista, que deixa de lado o enfrentamento. Mas vai continuar com muito mais facilidade de acesso aos consumidores, porque agora não há perigo de conflito entre grupos rivais.

O uso das Forças Armadas seria um atestado de incompetência para a polícia?

Os generais e oficiais do Exército não se manifestam publicamente sobre isso, mas em conversas particulares dizem que não são favoráveis a essa superexposição. Há um grave problema do uso das Forças Armadas e o espanto é que isso seja feito sob um governo de origem de esquerda, democrática. Se tivesse acontecido em outros tempos, certamente haveria uma grita, mas neste momento o que se ouve são aplausos.

O senhor é estudioso da obra de Monteiro Lobato. Como um sociólogo que pesquisa a violência se interessou pelo principal autor infantil do país?

Quando estudei no Museu Nacional no Rio, onde fiz o mestrado em Antropologia, pesquisava o processo de constituição de duas grandes faculdades, de Medicina e Direito. Uma dessas pesquisas falava de determinados atores que escapavam do discurso do bacharelismo e até o criticavam. Entre eles estava Lobato, que foi o cara que pensou o processo de venda de livros na porta de casa, em 15, 20 vezes. A minha família comprou a coleção do Lobato na porta de casa graças ao parcelamento. Eu me alfabetizei lendo Lobato. Ele sempre foi uma referência na minha cabeça. Naquele momento, duas coisas se juntaram: a participação do Lobato na minha formação e o interesse por um ator que estava destinado a ser um bacharel, se revolta contra essa condição, vende as terras da família e vai ser produtor cultural.

A obra de Lobato é racista?

Não. Lobato representa um pensamento na época em que a eugenia era vista como uma grande questão. Ele também gostava muito de ser do contra e pagava um preço por isso. Na questão de Lobato e o ne­­gro, o que ocorre é que se tenta descontextualizar sua obra. Dizer que o Lobato tinha um pensamento eugênico é só uma parte da verdade. Se eu afirmar que o Sítio do Pica-pau Amarelo relega a Tia Nas­­tácia a um papel secundário, não seria justo, porque na sociedade es­­cravocrata brasileira o negro se­­quer aparecia. Imagine uma negra falando, dando aulas, contando contos, como fazia a Tia Nastácia... Ela é uma cozinheira, mas cria a Emília, cria o Visconde, tem um protagonismo muito grande.

O que acha da ideia de suprimir dos livros trechos hoje considerados politicamente incorretos?

Acho que se deve criar um contexto de leitura, para que os leitores entendam em que condições aquilo foi escrito. Eu cresci lendo Caçadas de Pedrinho e me entendo como militante de causas antirracistas. E neste livro há outras questões que também teriam de ser contextualizadas, porque os personagens fumam, matam onça, ou seja, fazem coisas que hoje não são aceitas. Tomar Lobato ou outro autor fora de seu contexto faria com que tivéssemos uma série de restrições a muito do que foi produzido em diferentes épocas. Isso é muito temerário. Censura, jamais.

As caçadas de Pedrinho

“Falou com o Bodê?” A pergunta é sempre feita quando o assunto é violência – seja em redações de jornal de Curitiba ou fora dela. Não por menos. Esse homem erudito viu em pequeno um corpo estendido no chão. E quis saber por quê

+ VÍDEOS

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]