O discurso do papa Francisco, ontem pela manhã, na comunidade de Varginha – Complexo de Manguinhos, no Rio de Janeiro –, teve sabor de manifesto. Não foi um palavrório de ocasião, fadado ao esquecimento, ainda que tenha se dado numa praça leve e festiva como uma quermesse. O tom informal – quase uma parábola – passou longe do anedótico, como podia acontecer, e tocou, sem cerebralismo, nas feridas abertas da vida brasileira. Eis um dia para não esquecer.

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Já deu para notar que Francisco passou por uma "madureza básica de expressões do português do Brasil", nem sempre com sucesso, diga-se. Em Aparecida, anteriormente, o pontífice se referiu aos jovens como "menina dos olhos" das famílias. Valeu a intenção, mas não funcionou. A ironia e a malícia nacionais são difíceis de apreender. Em Manguinhos, o santo padre tentou de novo, e dessa vez falou a nossa língua.

"Água no feijão que chegou mais um..." O papa não cantou o samba de Jorginho do Império, nem o de Chico Buarque, tampouco o samba enredo da Unidos de Vila Isabel, campeã do carnaval 2013. Mas ao falar em pôr água no feijão, invocou num arrastão só as letras, as músicas e o chavão que os brasileiros adoram repetir, em todos os costados e classe sociais. Ponto para ele.

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Ao lembrar o gesto simples de aumentar a refeição para servir um forasteiro – com folga, nossa melhor herança lusitana –, o papa invocou o que acreditamos ter de melhor. Nós nos vemos como cordiais, solidários e fraternos, dados a panelaços... de feijão. Ao usar de uma pedagogia positiva, garantiu a boa conversa na favela carioca e embalou-a com laço de fita.

O papo com ritmo de samba, de contrabando, tratou de um dos temas mais caros ao século 21 – a hospitalidade. Não precisou recorrer a Jacques Derrida ou a Anne Dufourmantelle, nem ao menos gastou latim nas Escrituras. Preferiu uma imagem simpática do cotidiano e ser coloquial, o que é para poucos. Usou de humor ao dizer que "solidariedade não é palavrão". E deixou expresso que se deve receber os desafios do mundo com a mesma unção com que recebemos uma visita em nossa casa.

O termo "hospitalidade" não poderia receber melhor recauchutagem. Na versão do papa Francisco, receber é uma prática do cotidiano, mas também uma prática política. Não haverá pacificação (ou Polícia Pacificadora) que dure, disse ele, sem solidariedade duradoura. Em caso de alguém não entender o que alhos têm a ver com bugalhos, ofereceu de bandeja a frase que devia ser gravada em bronze e afixada por aí: "Não haverá harmonia e felicidade para uma sociedade que abandona na periferia parte de si mesma". Vai ser preciso muita água no feijão.

O "Manifesto de Mangui­­nhos" encerrou com pedidos de educação integral, saúde, segurança. Melhor que isso, repetiu com estilo uma frase que já está pálida a exaustão, mas que em meio a tantas casas enfeitas e crianças em euforia, ganhou uma mão de tinta: "A realidade pode mudar. O homem pode mudar".

Em tempo. O discurso de acolhida aos participantes da JMJ, em Copacabana, no fim da tarde de ontem prometia ser mais esquemático. Mas o slogan "bote fé" mexeu com o compasso do pontífice, cada vez mais solto.

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