Pryscila entre os personagens: Dalton "roubou" duas histórias da cartunista| Foto: Montagem: Pryscila Vieira

Bala de prata

A personagem Amely, da cartunista Pryscila Vieira, foi inspirada em uma reação emocional ante o namorado que tapava os ouvidos às suas críticas. Ela ordenou a ele que preferisse então uma boneca inflável, livre de anseios, desejos e alterações de ânimo.

A boneca, porém, acabou sendo um presente dado a ela pela mãe-criatividade. Hoje publicada em jornais e na internet, é para onde as mulheres à beira de um ataque de nervos se dirigem para cavar risadas em meio a frustrações. Amely, a boneca inflável que fala e pensa, parece resumir longos pensamentos femininos em tiras de três quadrinhos, lembrando que nenhum sentimento está blindado contra a bala de prata do humor.

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Na irmandade dos cartunistas curitibanos, Pryscila simula uma Branca de Neve rodeada por anõezinhos corcundas. A morena de 1m80 desbrava um gênero que, pouco tempo atrás, era visto como essencialmente masculino, em que as mulheres apareciam mais como tema do que como autora de piadas. Seus cartuns transpõem para o papel essa insatisfação. Pryscila afirma que, apesar das particularidades biológicas, mulheres também podem ser bem-humoradas durante os 30 dias do mês.

Diante de uma ilustração de Joe Ben­­nett, o brasileiro que desenhou o Bat­­man para a DC Comics, o observador passa a duvidar que qualquer fenômeno natural consiga distrair a atenção. Mas quando uma jovem alta, morena e distribuidora de beijos entra na Gibiteca de Curitiba, Bat­­man começa a se ver imediatamente enfraquecido, abandonado à própria sorte na Gotham City das chuvas de nanquim.

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Naquele momento, o Cavaleiro das Trevas é apenas o mais recente dos machos-alfa a ter as asas cortadas pela cartunista Pryscila Vieira. Às 9h30 da manhã, milhares de leitores do jornal Metro – diário de distribuição gratuita em São Paulo e Rio – já receberam sua porção diária de cinismo neofeminista. É lá, no caminho para o trabalho dos outros, que as personagens de Pryscila ganham voz para discutir, debochar, e com isso exaltar o poder das relações afetivas. Publicadas também no suplemento Equilíbrio, da Folha de S. Paulo, as aventuras de Amely se tornaram o trabalho mais popular da cartunista de 32 anos e viraram munição para o perfilador ansioso por conexões autobiográficas.

Afinal de contas, a personagem nasceu e cresceu se alimentando de um relacionamento amoroso moribundo. Em 2005, às turras com um namorado avesso a análises afetivas, Pryscila deu um ultimato: "Se é assim, então vá ficar com uma boneca inflável, que não fala e não pensa." O desabafo era o sopro inicial para a criação de Amely, a boneca inflável que não se satisfaz em permanecer imóvel, com a boca aberta. Dentro daquele corpo de resina plástica e orifícios largos habita uma personalidade instável, que pode até explodir ao receber uma rosa cheia de espinhos.

"Amely não é meu alter ego. São poucas as tiras que expõem alguma situação particular", pondera Pryscila, que até mudou a cor dos cabelos para evitar aproximações. "Não sou a favor de sair na rua queimando sutiãs, até porque são caros". Apesar disso, ela usa toda a imponência de seu 1,80 m de altura para bradar contra o que chama de "complexo de Cinderela". "Sou a favor dos direitos desiguais para gêneros desiguais", esclarece. "Recebi de minha mãe uma educação muito libertária. Ela tinha até medo de me ensinar a lavar a louça, com medo que eu acabasse me tornando uma mu­­lher submissa. Hoje, tenho prazer em fazer tarefas domésticas. Acredito ser um momento pendular da história. Se os pais forem radicais, provavelmente os filhos não serão", acredita.

Traços

Uma mesa de rodinhas no meio da sala incomodava a passagem da mais típica das famílias nucleares, hoje celebrizadas em decalques automotivos. A menina Pryscila andava pela casa, material de pintura sobre o tampo, à procura dos motivos a ser transferidos para o papel. Tendo aulas de pintura desde os 5 anos de idade, a infância transcorria como uma caixa de 36 lápis de cor, se abrindo em gavetas e revelando novos matizes. Aos 16, vencia o Salão de Humor de Piracicaba, ainda sem saber de fato que o Salão de Humor de Piracicaba é, simplesmente, o Salão de Humor de Piracicaba, o segundo maior evento mundial do gênero. "Eu não tinha ideia do que era possível fazer desenhando, em termos profissionais. Foi uma condução natural. Sabia que tinha que comunicar, mas não sabia como alcançar isso".

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Procurando uma luz no começo do túnel, iniciou aos 18 anos a graduação em Design Gráfico. Dois anos depois, foi contratada como ilustradora pela Gazeta do Povo, após ser indicada pelo chargista Paixão, considerado por Pryscila o Michelangelo do traço. É na feitura do jornal diário que acredita ter encontrado a disciplina e a concentração para, quatro anos mais tarde, abrir uma empresa de ilustração publicitária, e a partir dali empunhar o lápis apenas em causa própria.

Também na redação da Gazeta, Pryscila aprendeu que a boa história é um bem volátil, pertencente àquele que melhor consegue condensá-la. Por vezes, enquanto desenhava, entabulava conversas com um senhor que ali esperava outro funcionário. Pedrinho, como havia se apresentado, se dispunha a ouvir a garota que falava tão ininterruptamente quanto desenhava. Meses de­­pois, aqueles mesmos relatos haviam pousado sob sua luminária, agora sob a assinatura e o verniz de Dalton Trevisan. "Pedrinho" tinha lhe vampirizado duas histórias.

Solar

Na pesquisa diária surgem os temas para novas tiras. Uma procura cansativa, revela, que por vezes a obriga a sentar no sofá de casa e simplesmente permanecer – sem nada ou­­vir, falar, ou mesmo pensar. Zerar a cabeça.

Para fugir da solidão despertada em horas de prancheta, Pryscila procura a companhia do cachorro, a harmonia do piano e os instantâneos da fotografia, atividade que afirma ser a que menos conhece. No piano, porém, reconhece uma reserva de beleza estocada para tempos de catástrofe. "Mesmo que eu fique cega, ainda sim vou ter como me expressar."

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Não que ela tenha me­­do, ou mesmo desacredite de seu futuro. Preocupações vindouras não habitam o cotidiano de Pryscila. O arco narrativo de sua vida parece abrir e fechar a cada semana, como em uma série de tevê carente de continuidade. "Eu criei um Ta­­magoshi, que morreu. Plan­­tei um pé de salsinha, que secou. Escrevo umas tirinhas, mas não sei se isso conta como literatura", zomba ela do tríptico filho-ár­­vore-livro.

Nem mesmo a crueldade da violência parece capaz de dissipar a solaridade com que encara a vida. Alguns anos atrás, atraída pelos relatos do submundo, Pryscila se ofereceu para ser fotógrafa de um noticiário policial, fazendo a ronda noturna atrás de assassinatos registráveis. Atrás da câmera, percebeu ela, a vida se dissolvia em opções de ângulos e cores. O giroflex da viatura policial virava ade­­reço cênico; a pequenez hu­­mana coreografada. "Fa­­zer isso me fez ver o outro lado da vida", revela. Lados que convergiram quando o autor de um dos crimes fo­­tografados, descobriu ela mais tarde, era o porteiro de seu prédio.

Para o ficcionista, ne­­nhuma morte é permanente. A edição da revista Capitão América em que o herói é assassinado estava na mesa, sob nossos olhos. Na capa, a ilustração de Steve Epting destaca o escudo de Steve Rogers abandonado ante as escadarias do Capitólio. "Sabe, eu nunca li uma revista dessas até o fim", diz Pryscila, baleando uma admiração que, àquela altura da conversa, estava tão inflada e complexa quanto a sua personagem.