Saul, na Pracinha do Batel, num dos intervalos de trabalho: aos 80, jornadas a partir das 10 horas, esporte e fotos com quem o identifica pela cabeleira branca| Foto:

O gabinete do dr. Saul

Uma sala de 30 metros quadrados, nas cercanias do Clube Curitibano, guarda toda a documentação sobre a vida pública do engenheiro Saul Raiz, 80. São mapas, fotos, comendas e muitos, muitos recortes de jornal, devidamente encadernados pela gráfica Massolin.

Os livros traduzem seu ecletismo – vão de O Príncipe, de Maquiavel, à Dieta revolucionária do dr. Atkins, passando por Charlotte Brontë, Caldas Aulette, J. Salinger e um Harold Robbins inominável.

Os troféus e homenagens, idem. As honras passam pelo clube de basebolistas do Paraná, "povo do Boqueirão" ou Sociedade Urca. Ao todo são cerca de 90 placas, que dividem espaço com relíquias pessoais: 21 cachimbos, uma cadeira a Sérgio Rodrigues, o Juarez Machado de parede inteira, uma Leica e algumas pastas 007.

O que mais chama atenção é o bilhete ampliado, mandado a Saul pelo presidente Ernesto Geisel. Não é possível entender todas as palavras, mas uma frase se destaca – aquela em que o ex-presidente militar se diz espantado com a administração municipal.

O escrito data de 21 de novembro de 1977. Nos jornais da época, consta que Saul teria dito a Geisel numa das vindas que fez à cidade: "Por mais escuro que seja um túnel, eu vou lá". Eram mesmo tempos sombrios. (JCF)

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Ele vendeu secos e molhados, carregou móveis na loja do pai, jogou basquete e apenas aos 18 anos viu o mar pela primeira vez. Na década de 1950, formado em engenharia, entrou para a equipe de Ney Braga. Foi quando comeu poeira num Paraná com míseros 30 quilômetros de asfalto. Depois se mandou para Paris e fez carreira-solo como executivo de sucesso. No meio disso tudo, viveu uma lua de mel com a cidade onde nasceu. Curitiba tinha 700 mil habitantes quando Saul foi prefeito e crescia com assombrosa taxa de 6,8% ao ano, motivada pela diáspora da geada negra, que dizimou os cafezais a partir de meados da década de 60. Eram tempos bicudos de ditadura, mas que nada: ele se tornou tão popular quanto a banda Blindagem e o poeta Paulo Leminski.

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Em 16 de julho de 1975, o engenheiro Saul Raiz e sua mulher, Myrthe, caminhavam pelo Centro de Curitiba em direção do hotel onde moravam – na Comendador Araújo – quando um grupo de nordestinos castigado pelo frio puxou conversa: "Só falta nevar nessa cidade", disse-lhe um. "Nevar...", desdenhou o homem, antes de se atracar a um acolchoado.

Na manhã seguinte, ao grudar o nariz na janela, o prefeito viu tudo branco. Tinha de rir: a capital vivia de fato tempos interessantes – e ele fazia parte da his­­tória.

As mudanças, sabia, vinham de longe – o Plano Agache na década de 1940, a remodelação da cidade nos anos dourados de Bento Munhoz da Rocha, as ações agressivas feitas por Ivo Arzua a partir dos meados de 1960, o início da era Lerner em 1971... Saul, aos 45 anos, oriundo dos bastidores do governo Ney Braga e da iniciativa privada, poderia não passar de um hiato político, até a volta anunciada de Jaime Lerner, seu antecessor no cargo. Mas não foi o que aconteceu. O executivo grisalho estava mesmo de passagem, mas se fez como a neve – um evento inesperado.

De 1975 a 1978, o homem alto, de olhos azuis e cabeça precocemente branca se tornou a Bala Zequinha municipal. Não era "de festa de grã-fino nem de colunas", como diz, mas de circular pelos bairros como um mascate. Ia com gosto: tinha se acostumado à poeira nos tempos de diretor do Departamento de Estradas e Rodagens (DER). Não seria qualquer vento frio ou lamaçal a assustá-lo.

De tanto visitar os arrabaldes, despertava piada – virou "o prefeito do saibro", ou do antipó, como prefere. "Eu não precisava fazer propaganda. A propaganda era eu mesmo. Via o que faltava. Ia a Brasília. Pedia emprestado". Em reportagem sobre os 40 anos da Vila Nossa Senhora da Luz, em 2006, a reportagem da Gazeta do Povo recolheu memórias da primeira Cohab paranaense. Não poucos moradores lembraram do prefeito Saul, de óculos escuros e carro preto andando por lá, sábado à tarde, com a naturalidade de quem espairece numa matinê do Clube Israelita

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Ele admite que chamava atenção. As mulheres, inclusive, não o perdiam de vista, atentas ao prefeito com ares de Carlos Zara, o galã da época. "Myrthe nunca se importou com o assédio", avisa o sujeito que ainda hoje posa para fotos ao lado de respeitáveis mães de família com as quais encontra volta e meia. "Eu lembro de o senhor ter ido a minha escola. Posso tirar uma foto?" A resposta é sempre sim.

Aos 80 anos, 1,82 metro, 90 quilos – o ex-prefeito joga tênis, faz musculação, trabalha mais de oito horas por dia, mantém as unhas e os cabelos cintilantes. Abandonou os cachimbos e passaria por 60 anos sem precisar dos truques de iluminação de Julio Iglesias. De reprovável mesmo – segundo uma de suas secretárias, Carmem – só o gosto pelo junkie food. "Ele atravessa a Avenida Getúlio Vargas, compra pastel, come cachorro quente. Não tem frescura", comenta ela.

Saul é alto executivo da holding Palmital e tem sobre sua tutela a construção de quatro prédios com 1,2 mil apartamentos na capital. Para entrevistá-lo foi preciso driblar por quase um mês agendas cheias, viagens internacionais, telefonemas intermináveis. Nada de esperar uma longa conversa ao pé da rede: o doutor não tem tempo nem paciência para isso. É de berço – os seus não puderam esperar.

Casa Luís

Leizor Raiz era um homem culto dos arrabaldes de Varsóvia, na Polônia. Ensinava línguas e tinha informação o bastante para saber que chegara a hora de uma nova diáspora. Em 1928 – três anos depois de Hitler lançar suas teses racistas em Mein Kampf – mandou-se para Curitiba, onde morava sua irmã, Malke, seguindo a rota de dezenas de judeus aqui recebidos pelo industrial Salomão Guelmann.

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Em 1929, foi a vez da mulher, Etla. Ela vendeu seu único casaco de pele para pagar a passagem e imigrou com a filha de colo, Beila. No ano seguinte nascia Saul. A família vivia dos ganhos de Leizor como mascate, a bordo de uma carrocinha. Os sírios, aliás, estavam entre seus parceiros no comércio de gravatas e tecidos. Tinham de fato chegado ao Novo Mundo. Em pouco tempo, os Raiz arrumariam um sobrado na Sete de Setembro com a Alferes Poli, passando para o ramo de secos e molhados.

Em meados da década de 1940, Leizor abriu a Casa Luís, de móveis, na Marechal Floriano. O jovem Saul carregava mesas e cadeiras pelo centro da cidade. Tudo indica que foram nesses anos que a personalidade popular do futuro prefeito se formou.

Ele admite: frequentava o Clube Israelita, na Praça Santos Dumont, mas era um entre tantos garotos do Colégio Estadual do Paraná, aficionado em basquete, peladas e preocupado em arrumar um bom emprego. Em 1948, estava perto disso: passou no vestibular de Engenharia na Universidade do Paraná e ganhou do pai uma viagem a Guaratuba, onde viu o mar pela primeira vez. De volta, era um rapaz feito, desses que cumpria expediente no Centro Cívico.

Foi ali que sua vida dobrou a esquina: longe de ser um barnabé, como se dizia, acabou chamando atenção daquele que se tornaria o maior mito da sua vida – Ney Braga. Ao chegar na prefeitura, em 1954, e ao governo, em 1960, lembrou-se do rapaz pé de bode, assim como de seus colegas de faculdade: Karlos Rischbieter e Dario Lopes dos Santos. Hoje, Ney Braga é o único poderoso na estante de fotografias de Saul. "Ele preferia engenheiros a políticos."

À frente do DER, a partir de 1961, Saul se tornou um judeu errante. Tinha de pavimentar o Paraná, segundo ele um grande sertão com não mais do que 30 quilômetros de asfalto. "Fiz a Estrada do Café", diz, como quem fala que comprou pão na padaria. Foi nesses tempos que, por intuição ou algo assim, começou a colecionar todos os recortes de jornal que falassem do seu trabalho – bem ou mal. Quanto a desejar a vida política, não admite.

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Prova disso seria sua ida para a Klabin, assim que finda o governo, na qual se tornou um executivo dos mais bem pagos do país. Permaneceu até se deparar com a indicação para prefeito – feita pelo governador Jayme Canet, da Arena. Ganhou por um voto em sessão na Assembleia Legislativa. Tinha motivos para aceitar: ao retornar do Rio de Janeiro com Myrthe e as filhas Rosane e Vanessa confirmou que sua cidade já não era mais aquela do armazém da Etla. E que não perderia aquilo por nada.

Fica a impressão de que cada um dos 1.460 dias passados por Saul Raiz à frente da prefeitura foram documentados pelos jornais. Os recortes estão todos lá, em livros encadernados com os caprichos de uma colegial. Em algumas páginas, é como se ele tivesse um dublê, pois em horas inaugurou uma escola, deu expediente, pôs um basta na máfia das funerárias e lançou programa na CIC.

Não raro, recebia elogios até de gente mais à esquerda, como o designer Reynaldo Jardim, que circulava então por Curitiba, como mostra carta publicada no Correio de Notícias em 20 de agosto de 1977. "Eu curti cada minuto. Minha filosofia é aproveitar as oportunidades que a vida dá." O sonho acabou no início de 1979.

Em 1982, sob insistência, Saul se candidatou ao governo do estado, mas foi derrotado pelo londrinense José Richa, seu amigo. Perdeu até no Boqueirão e adjacências, por onde circulava como um líder de associação. "Havia a mancha da ditadura contra nós. As pessoas precisavam encerrar o ciclo da Revolução. Respeito e entendo a decisão do povo."

A Klabin o aguardava. A neve nunca mais caiu. Saul nunca mais voltou.

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