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Vídeo: | Pedro Serápio / Gazeta do Povo
Vídeo:| Foto: Pedro Serápio / Gazeta do Povo

Donas de casa, coletores de lixo e carrinheiros mereciam ter um representante nas secretarias de meio ambiente, organizações não-governamentais e até nas Nações Unidas. Por mérito. Como poucos, eles sabem em que ponto os programas de reciclagem de materiais naufragam, impedindo os índices de ultrapassarem suas marcas nada olímpicas. Para tanto, a matéria-prima de que dispõem é simples – o dia-a-dia. Ouvi-los, logo, é fundamental.

Os estudiosos de avental, macacão e carrinho podem ajudar a entender, por exemplo, por que cargas d’água muitos projetos fracassam já na pia da cozinha. Ou por que, à revelia de tantos esforços governamentais, o lixo separado pelas famílias acaba na vala comum do Aterro Sanitário da Caximba, em Curitiba.

O catador de papel José Ramalho dos Santos, 52 anos, 25 deles puxando papel, não vacila: "A reciclagem de lixo é uma questão de bom senso e de patroa". Melhor explicar. Seu Zé, como é chamado, observa, não é de hoje, que a classe média – justo a que tem mais recicláveis em casa – não costuma ensinar seus ajudantes a separar orgânicos e reciclados.

Para o carrinheiro – que há três anos participa do Movimento Nacional de Catadores e da ONG Lixo e Cidadania –, a "prova do crime" está na lixeira. Basta botar o olho. Se tiver papel higiênico junto com orgânico, garante, a família está no estágio mais primitivo de reciclagem – apesar de essa mistura não ser condenada pelos técnicos. "Danou-se", diz o paraibano de nascimento, sobre a cena que pode ser vista a torto e direito. "Colocar o papel do banheiro à parte é um cuidado mínimo que gente do ramo costuma tomar. O mesmo vale para o cocô do cachorro", reforça.

Não há pesquisa capaz de confirmar que o descuido ambiental começa do portão para dentro, mas já virou senso comum. "Orientar os empregados a reciclar é uma medida simples e eficiente. Se fosse uma prática corriqueira, não teríamos tanto material reciclável indo para o aterro", reforça Marilza Oliveira Dias, assessora técnica da Secretaria Municipal do Meio Ambiente. Ao lado de Porto Alegre e Belo Horizonte, Curitiba tem os melhores índices de reciclagem do país – na casa dos 20%. Das 2,3 mil toneladas de lixo recolhidas a cada dia, 540 são recicladas. Mas é urgente melhorar esse desempenho.

Se dependesse da dona de casa Vânia Marca, 55 anos, a guerra estaria ganha. Mas não foi sempre um mar de rosas. Durante a maior parte de sua vida ela morou em casa. "Duas casas", brinca – tamanho o número de badulaques que acumulava. Há 15 anos, a mudança para um apartamento virou um trauma familiar. "Sofremos muito para nos adaptar", diz. Coincidiu que na mesma época uma filha de Vânia começou a trabalhar numa grande academia de ginástica de Curitiba onde a reciclagem era obrigatória. A família toda tirou proveito da conversa. Ao despachar os guardados inúteis para o lugar certo, os Marca passaram a sofrer menos com a falta de espaço.

Não foi tudo. O interesse da dona de casa no assunto foi tamanho que ela acabou criando vínculo com uma creche, hoje fiel depositária de eletrodomésticos a retalhos de pano que só estorvam em casa, mas que ainda podem render um dinheirinho para quem precisa. Óbvio – nem tudo é perfeito. Vânia tem tantas dúvidas sobre reciclagem que um de seus inacreditáveis sonhos de consumo é fazer uma visita guiada ao Aterro da Caximba, para ver de perto o estrago causado pela reciclagem malfeita. "Adoraria saber como é que eles se viram com tanto lixo", comenta.

Enquanto o passeio ao aterro não entra no roteiro turístico da cidade, a matriarca faz o que pode. Lava até os plásticos que protegem os frangos resfriados, para repassar o produto limpo aos carrinheiros. Mas a atenção vai principalmente para os coletores de lixo que passam na porta do prédio em que mora. Ali, uma raridade acontece: cacos de vidro são embalados com folhas de jornal e recebem um aviso escrito com caneta piloto. Fosse todo mundo assim, a direção da Cavo – empresa que administra a coleta em Curitiba – pagaria uma promessa em Aparecida do Norte.

Todos os meses, pelo menos 13 dos 454 coletores se acidentam na hora da coleta. Os motivos podem ser torção no sobe-e-desce do caminhão, atropelamento, mas principalmente ferimentos causados por restos de vidros, agulhas e cachorros. "Treze casos por mês parece pouco, mas é como se a cada dois dias um dos nossos funcionários se acidentasse", explica o gerente operacional da Cavo, Ricardo Cortez de Souza.

O coletor José de Paulo Pereira, 30 anos, sabe bem do que se trata. Em seis anos de ofício, já enfrentou o que chama de "os três inimigos." Talhou a palma da mão com caco de vidro, sentiu na perna a dentada de um rotweiler e levou uma agulhada que o deixou com a pulga atrás da orelha. "Sem falar no latão pesado", acrescenta o coletor que vive perigosamente nas ruas do Pilarzinho e do Sítio Cercado.

Toda vez que uma seringa é jogada no lixo comum e atinge um dos rapazes da coleta os custos em exames preventivos chegam a R$ 1 mil. Há riscos de contaminação por aids, hepatites e afins. Por essas e outras, a turma do caminhão é graduadíssima para opinar sobre reciclagem de lixo. Eles vivem de olhos bem abertos. Alguns, como José de Paulo, poderiam escrever uma cartilha. "Tem de usar a criatividade para não expor o funcionário a perigos", reforça Aílton Constantino da Silva, encarregado operacional da Cavo.

Criatividade é o que não falta a José de Paulo. Como o caminhão não pára, ele quase não tem tempo de conversar com a clientela. Mas, se precisar, está a postos para papagaiar seu guia "saiba tudo sobre separação de lixo sem fazer esforço". Para quem não tem pachorra para enlear cacos como Vânia, ele aconselha colocar tudo numa garrafa pet. Idem para agulhas, algodões, gazes, cotonetes e giletes. Quanto aos cachorros amarrados na hora em que o caminhão passa, só resta uma alternativa: o bom senso do qual fala o carrinheiro José Ramalho dos Santos.

ß José Carlos Fernandes

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