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O ministro do STF Alexandre de Moraes.
O ministro do STF Alexandre de Moraes.| Foto: Secom/TSE.

Passado o período de campanha, cessa também a validade das regras fixadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a fiscalização da propaganda eleitoral. Mas uma possibilidade, a partir de agora, começa a chamar a atenção de advogados e estudiosos do fenômeno das chamadas “fake news”: a hipótese de medidas, entendimentos e procedimentos adotados pelo presidente da Corte, Alexandre de Moraes, contra as mentiras espalhadas na internet serem transpostas para a Justiça comum, para remover conteúdos considerados ilícitos.

No fim do ano passado, o TSE aprovou uma resolução que permitiu aos ministros remover, a requerimento do Ministério Público, “fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados” que atingissem a “integridade do processo eleitoral”. Inicialmente, imaginou-se que a norma teria como alvo somente acusações infundadas de fraude nas urnas eletrônicas. Outro trecho, porém, deixava claro que eleitores poderiam ter limitada sua liberdade de expressão caso também ofendessem a honra dos políticos.

Mesmo sem pedido do MP, muitas vezes contra a opinião do órgão, e com base em representações dos próprios candidatos e coligações, a Corte passou a retirar da internet postagens consideradas ofensivas, com “discurso de ódio” ou consideradas atentatórias à democracia. Foram consideradas falsas notícias ou declarações que atribuíam corrupção ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo fato de suas condenações terem sido anuladas.

A 10 dias do segundo turno, Moraes propôs e aprovou por unanimidade uma nova resolução, que dispensou a participação do MP nos processos, e permitia a ele, de ofício e sem provocação dos candidatos, retirar da internet conteúdo “idêntico” a algum já julgado irregular pelo TSE. Moraes também ganhou poder de polícia para determinar a suspensão temporária de contas, perfis ou canais nas mídias sociais com “produção sistemática de desinformação” e até mesmo bloquear plataformas que viessem a descumprir reiteradamente às suas ordens.

Essas regras foram contestadas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, no Supremo Tribunal Federal (STF). Ele argumentou que várias delas não estão previstas na legislação, contrariam o Marco Civil da Internet, e nem poderiam ser criadas pelo Judiciário, além de serem desproporcionais, permitirem uma restrição excessiva da liberdade de manifestação do pensamento e até mesmo viabilizarem a censura prévia, vedada pela Constituição.

Ao julgarem pedido de suspensão da resolução, a maioria dos ministros manteve sua validade. Dos 11 integrantes do STF, 9 seguiram o entendimento do relator, Edson Fachin, de que “o enfrentamento ao complexo fenômeno da desinformação e dos seus impactos eleitorais” permitiria ao TSE “um arco de experimentação regulatória” para lidar com o problema.

A possibilidade de essas regras passarem a ser aplicadas pela Justiça comum não se dá apenas em razão desse juízo preliminar positivo realizado pelo STF, mas também pela ausência de legislação específica para tratar o tema – algo que há tempos os ministros lamentam. O projeto de lei mais avançado sobre o tema, já aprovado no Senado, travou na Câmara dos Deputados após várias mudanças no texto original, e deve voltar para análise dos senadores.

E é em razão da ausência de procedimentos legais, que a Justiça pode buscar meios próprios de lidar com as fake news, a exemplo do que fez o TSE. Para isso, pode usar regras já fixadas no Código de Processo Civil, que permitem por exemplo lançar mão das chamadas “tutelas inibitórias” (nome que se dá à medida judicial que cessa um ato potencialmente danoso a fim de proteger o direito de alguém), no que se encaixa a própria remoção de conteúdos, bem como a fixação de multas para forçar uma plataforma a cumprir esse tipo de ordem.

A fixação de regras e seu uso pelo TSE (como os valores das multas e prazos para acatar as decisões), bem como os entendimentos construídos ao longo da campanha sobre o que caracteriza uma “fake news” (entendida por vários ministros como conteúdos com propósito de enganar para auferir algum tipo de ganho) criou uma jurisprudência que pode servir de parâmetro e inspiração para que juízes as apliquem em suas decisões quando lidam com publicações sem relação com as eleições – como aquelas que caluniam, difamam ou injuriam alguém, ou espalham desinformação que prejudique uma coletividade.

“Após a campanha, o receio é que mesmo que a Justiça Eleitoral entenda que as representações por ‘fake news’ ligadas à eleição tenham perdido o objeto, a Justiça comum comece a imitar as decisões. É um precedente perigoso”, diz a advogada Karina Kuffa, que defende vários deputados aliados de Bolsonaro que tiveram posts removidos pelo TSE e que foram investigados no inquérito das fake news conduzido por Moraes no STF.

Especialistas no tema veem alguns problemas na transposição dessas regras. Mestre e doutor em direito do Estado pela PUC-SP e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Diogo Rais entende que a criação das normas mais rigorosas pelo TSE se justifica pelo período eleitoral, com prazos mais curtos para as decisões, pela conjuntura de polarização política nessas eleições e pelo fato e o próprio tribunal ter passado a ser alvo de questionamentos – condições que não estão presentes para aplicar as regras a outros processos.

“Se o Judiciário se apoiar nesse procedimento, a chance de erro é muito maior. Adotar esse parâmetro de forma abstrata e geral seria uma afronta muito grave para a liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet e a livre iniciativa”, diz Rais.

Um dos riscos é a Justiça deixar de indicar às plataformas os endereços eletrônicos exatos (“links”) que devem ser removidos. A resolução do TSE exige que as URLs sejam informadas, mas caso isso seja dispensado, caberá às próprias plataformas retirar do ar publicações conforme o conteúdo considerado irregular. Isso abre margem para que coisas semelhantes, mas não idênticas, sejam removidas. Uma tendência seria a supressão massiva de conteúdos pelas plataformas, mesmo que eles não sejam ilícitos, para que elas se livrem de pesadas multas.

“A gente pode estar autorizando a uma empresa a capacidade de remover conteúdos que podem não ser iguais”, afirma Rais. As empresas provavelmente reclamariam por terem esse trabalho adicional, de moderar conteúdo não produzido por elas, mas por seus usuários. “Cria-se um ônus muito grande para uma atividade lícita. Passar para as plataformas um pente fino de busca daquele conteúdo, causa espécie de invasão de propriedade, porque a plataforma não é obrigada a trabalhar para o Estado”, completa o professor.

Outro problema está relacionado à possibilidade de remoção de contas, perfis e canais inteiros das redes, sob a presunção de que publicariam conteúdo ilícito. “A remoção de um canal e não de um conteúdo seria irregular por si só. É como se se permitisse cortar a língua de alguém. Nossa regulação permite a remoção como exceção, de modo que seja cirúrgica. A remoção de um canal jamais seria cirúrgica”, afirma ainda Diogo Rais.

O professor da Uerj e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) Carlos Affonso Souza vê outros obstáculos para a transposição das regras do TSE para a Justiça comum. Ele lembra que antes de impor a remoção de conteúdos às plataformas, o TSE já havia estabelecido acordos com elas para criar um canal de denúncias. Notícias falsas que chegavam ao tribunal eram repassadas para as empresas de tecnologia, de modo que elas pudessem removê-las, caso considerassem que elas feriam suas regras de uso. Esse primeiro passo não foi implementado por tribunais de justiça estaduais e federais. Carlos Affonso também considera cedo para concluir que a resolução do TSE servirá como precedente para os outros tribunais, porque ainda não se sabe se foram efetivas para remover grande quantidade de conteúdos em duas horas, como prevê a regra. E, por fim, ele também repete o argumento de que a Justiça Eleitoral tem atuação diferenciada, pelos prazos mais curtos para decidir.

“Dito isso, me parece que pode haver tentativas de aplicar – via jurisprudência – algumas das ferramentas implementadas pela resolução do TSE. Imagino que essa tentativa de ampliação, se feita sem respaldo legal, vai gerar um contencioso com as próprias plataformas”, prevê o professor da Uerj.

“Tenho dificuldade em ver um tribunal de justiça sair buscando URLs de conteúdos idênticos. Essa medida faz sentido no caso do TSE, a quem cumpre zelar pela integridade do processo eleitoral, mas é difícil imaginar um tribunal de justiça criando um departamento dedicado à busca de URLs de conteúdo idêntico ao que já foi objeto de decisão. Por tudo isso, me parece que podemos ver tentativas de transposição do regime da resolução do TSE para fora dos limites da Justiça Eleitoral, mas esse esforço vai esbarrar em obstáculos práticos e em fundados questionamentos jurídicos”, diz Carlos Affonso.

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