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“O código de postura dizia que os pais não deveriam dormir com as crianças, porque as doenças eram transmitidas por água, ar e gases. As então recentes descobertas da medicina condenavam o ambiente fechado”, Marcelo Sutil, historiador | Priscila Forone/Gazeta do Povo
“O código de postura dizia que os pais não deveriam dormir com as crianças, porque as doenças eram transmitidas por água, ar e gases. As então recentes descobertas da medicina condenavam o ambiente fechado”, Marcelo Sutil, historiador| Foto: Priscila Forone/Gazeta do Povo
  • A Curitiba do século 19 foi descrita por um viajante inglês como
  • Planta de casa curitibana evidencia a falta de privacidade: era possível ir de uma sala a outra passando por dentro dos quartos

A arquitetura revela muito a respeito dos hábitos de uma população. Projetos de casas construídas nas duas primeiras décadas do século 20, em Curitiba, mostram que banheiro era artigo de luxo e as famílias da classe média se davam quase que por satisfeitas em poder tomar banho com uma bacia na salinha debaixo da escada. É claro que, nos eventos especiais ou uma vez ao mês, era quase que rotina visitar as casas de banho da cidade para dar uma caprichada a mais no visual. Curitiba tinha oito residências com este fim. Pais de família, mães e crianças se revezavam nas salas com banheira para poder se lavar melhor.

A disposição dos cômodos das casas também era algo que chamava a atenção: os quartos normalmente ficavam ao lado da sala de estar e, em alguns casos, para chegar ao salão de jantar era preciso passar por dentro dos dormitórios. Por isso, as visitas não estranhavam em ter de sair da residência para adentrar novamente – só que pela varanda – para conseguir ter acesso à mesa de refeições.

A medicina e o sanitarismo, na época, influenciaram muito o código de posturas de Curitiba, que tratava de diversos assuntos, entre eles o modo como as residências deveriam ser construídas. "O porão precisava ser alto para ventilar o assoalho e, assim, evitar a umidade. Os médicos também diziam que era para os pais deixarem de dividir o quarto com os filhos, porque as doenças poderiam ser transmitidas pelo ar, água e gases. Foram regras de higiene e bem viver que influenciaram a arquitetura da época", explica o historiador Marcelo Sutil, autor do livro O espelho e a miragem: ecletismo, moradia e modernidade na Curitiba do início do século 20. A obra é resultado de sua dissertação de mestrado e mostra como era a arquitetura de 1900 a 1920 na capital paranaense e quais os fatores que a influenciaram para ser deste modo.

Já no início do livro, Sutil lembra que, ainda no século 19, Curitiba, vista de longe, parecia mais um acampamento prestes a se levantar – foi assim que o viajante inglês Bigg-Whither traduziu o que via, dada a semelhança de quase todas as edificações. As casas caiadas (brancas, pintadas à base de água e cal) pareciam barracas e não residências.

Por que a escolha por estudar a arquitetura das duas primeiras décadas do século 20 em Curitiba?

É um período de transição. A arquitetura colonial (as antigas casas brancas) começa a desaparecer e o ecletismo começa a fazer parte da arquitetura. É o momento em que a cidade está crescendo, os imigrantes chegam e surgem as novas técnicas de construção. Curitiba perde o ar colonial e começa a se parecer com uma capital.

Quais as características desse ecletismo?

Foi um marco histórico do período e amplamente usado pela burguesia que estava em busca de referências – não era para ser como as casas dos nobres e nem como a dos plebeus. Os burgueses se apropriaram de estilos diferentes de arquitetura (ecletismo) para criar sua própria identidade. As casas começaram a se diferenciar pela ornamentação, umas tinham jarros na platibanda, outras possuíam janelas mais arredondadas. Os adereços de fachadas se popularizaram e começaram a ser vendidos em casas de materiais de construção. Mesmo as residências mais simples, das famílias mais pobres, poderiam ter uma coluna grega. Era uma classe que dava primazia ao conforto e amava o progresso.

Aquela obediência que deveria haver para a identificação das construções, ou seja, igrejas deveriam ser góticas, prédios escolares ou públicos deveriam ter arquitetura clássica, tudo isso foi "desrespeitado" a partir do momento em que os burgueses levaram arcos e colunas para suas residências e copiaram o que era feito antes apenas nos espaços públicos.

De que maneira os médicos e sanitaristas influenciaram a arquitetura da época?

Médicos e engenheiros realizaram uma mudança na maneira como os homens e mulheres viam a casa e sua privacidade. Algumas residências tinham o quarto voltado para a sala, sem corredor. Ou, ainda, para chegar à sala de jantar era preciso passar pelos quartos, então as visitas menos íntimas tinham de sair da casa e entrar por outro lado para conseguir ter acesso à mesa de jantar sem entrar nos dormitórios. Essas concepções construtivas foram revistas com o passar dos anos. No código de postura do município, que tratava de diversas coisas, havia as normas para a arquitetura. Pedia-se assoalho ventilado para evitar a umidade e, consequentememte, as doenças. O jardim lateral começou a ser liberado para que houvesse luz dentro das moradias. O código também dizia que os pais não deveriam dormir com as crianças, porque as doenças eram transmitidas facilmente por água, ar e gases. As então recentes descobertas da medicina sobre os fundamentos da respiração saudável, sobre as reservas de oxigênio e os mecanismos de transpiração condenavam o ambiente fechado.

E os banheiros? Eles já existiam nos lares?

Apenas as casas mais privilegiadas possuíam banheiro. Grande parte tinha o que eles chamavam de latrina e, debaixo da escada, uma salinha para tomar banho de bacia. No século 19, em Curitiba, as casas de banho fizeram sucesso justamente por essa falta de banheiros. Nas duas primeiras décadas do século 20, percebe-se que o banheiro começa a aparecer como um anexo da cozinha nas casas de classe média, até mesmo por uma questão de economia, por causa da posição da tubulação. Só mais tarde os banheiros são construídos perto dos quartos. A energia elétrica também era rara para a classe média: em algumas residências, nem todos os cômodos tinham este benefício.

Como eram essas casas de banho?

Curitiba tinha cerca de oito casas com este fim. Há poucas informações oficiais a este respeito. As que consegui foram obtidas nas crônicas de Evaristo Biscaia, publicadas nos anos 40 e 50 para contar coisas relativas à rotina daqueles anos ou dos anos anteriores. As casas de banho foram construídas principalmente no fim do século 19, quando ba­­nheiro era artigo de luxo nas residências. Houve uma que pertenceu ao médico Dr. Cândido de Leão, que, inclusive, anunciava tratamentos hidroterápicos. Mas essa foi a única que pertenceu a um médico; as outras funcionavam com o objetivo único de fornecer banho à população: os anúncios diziam que havia os dias da semana para os rapazes, moças e crianças – imagino que o preço não deveria ser exorbitante. A procura maior era nos sábados e domingos. Pela planta arquitetônica a que tive acesso, parece que as casas de banho não tinham chuveiros, mas não tenho certeza. A planta mostra banheiras com água aquecida em caldeiras. Esses ambientes, ao contrário de hoje, não tinham nada a ver com prostíbulos.

Serviço:

O espelho e a miragem: ecletismo, moradia e modernidade na Curitiba do início do século 20. Texto de Marcelo Sutil. Travessa dos Editores, R$ 25.

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