Afonso e a família: contraventor se safou da Justiça, mas não dos dramas familiares| Foto: Acervo Biblioteca Nacional

No Paraná

Golpe nos barões da erva-mate em Curitiba

Numa das fontes encontradas pelo pesquisador Ely Carneiro de Paiva, consta que Afonso Coelho de Andrade, durante o período de sua regeneração, foi acusado de derramar notas falsas. Defendeu-se, lembrando estar fora do ramo havia tempo. Mas que não pensaria duas vezes em retomar a contravenção, caso fosse um bom negócio.

A ocasião fez o ladrão. Em 1919, aplicou nos barões do mate paranaenses golpe semelhante ao aplicado nos barões do café paulistas. Estava fora de forma. Ele e dois comparsas foram pegos. Julgado em Curitiba, acabou condenado a 4 anos de prisão, reduzidos a três meses, período em que desfrutou da hospitalidade dos cárceres paranaenses.

Sabe-se pouco sobre o quanto e como lesou a economia local. Mas se sabe o bastante: Godofredo Rangel, seu cunhado, conseguiu indulto junto ao presidente do estado, Afonso Alves de Camargo. De nada adiantou a peleja do advogado de defesa e do promotor Oliveira Franco, ocupado em levá-lo a pagar com juros.

O caso recebeu destaque na Gazeta do Povo, fundada naquele ano. "Não fossem os jornais, não haveria como recuperar os passos de Afonso Coelho", diz Ely. (JCF)

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Heterônimo

Raul de Albuquerque era como Afonso se apresentava, confundido a polícia.

Curiosidades

R$ 5 mil foram os gastos do pesquisador Ely Carneiro de Paiva com reproduções de microfilmes e pagamento a pesquisadores. "Também fui roubado pelo Afonso", brinca ele. Várias editoras se negaram a publicar o livro.

30 capítulos

Surpreso, Ely localizou na Biblioteca Nacional uma novela ilustrada, em 30 capítulos, sobre as proezas de seu biografado. Em 1922, a revista O Malho iniciou uma série sobre Afonso, logo após o assassinato. Com a morte de Ruy Barbosa, em 1923, o culto ao estelionatário fanfarrão é apagado pelo culto ao "Águia de Haia".

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O engenheiro elétrico Ely Carneiro de Paiva, 47 anos, professor da Unicamp, faz história nas horas vagas. A exemplo de muitos diletantes, inventou de montar árvores genealógicas familiares. O resultado poderia ficar restrito ao quarto e sala de sua casa, não fosse ter encontrado, sem querer, o mapa do tesouro. O "mapa" atende pelo nome de Afonso Coelho de Andrade, o mais famoso estelionatário da Primeira República brasileira, cujas peripécias, misteriosamente, desapareceram do imaginário e do anedotário nacional.

Os parentes de Afonso Coelho foram vizinhos dos antepassados da mulher de Paiva. Não passava de uma curiosidade – os tais seis graus de separação entre os anônimos e os famosos. Mas na medida em que o pesquisador encontrava mais informações, mais se dava conta de que em algum momento tinha faltado memória ao país, única explicação para um bandido tão charmoso e inteligente não figurar em uma biografia, um filme ou um desfile de escola de samba.

Ely bem que tentou convencer historiadores profissionais a se debruçarem sobre as fartas fontes disponíveis a respeito de Afonso, na maioria jornais, nos quais diálogos inteiros do contraventor costumavam ser reproduzidos. Em vão. Restou-lhe fazer o serviço sozinho. O resultado é O homem do cavalo branco – uma história policial da Belle Époque, lançado pela editora Documenta, livro que deixa os leitores tão pasmos quanto o próprio Ely.

Afonso teria se iniciado ainda jovem na vida do crime, possivelmente entediado com a rotina do ofício de guarda-livros em Santos (SP). A contabilidade foi sua escola. Verdadeiro bandido à moda antiga, aplicava golpes com estilo, em especial contra casas exportadoras de café. Mas também apreciava pequenas contravenções, à moda "conto do vigário". Se preciso fosse, mestre nos disfarces, vestia-se de padre, velho, ex-escravo ou de caipira. As fugas eram tão espetaculares quanto os golpes.

A mais famosa delas se deu em 1897, no Rio de Janeiro, quando tinha 22 anos. Condenado, convenceu os guardas a jantar, por sua conta, embebedou-os e fugiu num cavalo branco, proeza pela qual ficou famoso. Passou a ser o "homem do cavalo branco", uma figura tão típica que cronistas e escritores da época, como Monteiro Lobato e João do Rio, escreveram sobre ele. Inspirou, inclusive, duas poesias de Olavo Bilac. E bem parecia um personagem de Eça de Queiroz. "Tinha lábia. Ele percebeu a fragilidade do Código Penal e a ingenuidade das forças de segurança", explica o autor.

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As comparações entre o doidivanas Afonso Coelho de Andrade e Frank Abagnale – o personagem verídico de Leonardo DiCaprio no divertido Prenda-me se for capaz – são imediatas. "Acho que assim como Abagnale, Afonso tinha alguma patologia. Nas vezes em que se viu preso, levava numa mala livros de filosofia e as matérias publicadas sobre ele", diz. Como algumas fugas são lendárias, e carregadas de tintas, prefere chamar o livro de romance-reportagem. "Comparavam-no ao Rocambole, uma figura dos folhetins publicados pelos jornais. Havia muita fantasia. Nem seus herdeiros, aos quais procurei atrás de fontes, faziam ideia."

A família, aliás, é um dos grandes capítulos da vida de Afonso. Nascido abastado, precisou dos seus para "limpar sua barra", clamando misericórdia às autoridades fluminenses, paulistas, baianas, gaúchas e paranaenses [leia nesta página). No casamento, da mesma forma, virou casas de canelas para o ar. O primeiro casamento, com Risoleta, acabou – à revelia de o "meliante" se declarar católico e um híbrido improvável de monarquista com socialista. Em segundas núpcias, casou-se com uma irmã de Godofredo Rangel, homem de leis e o melhor amigo de Monteiro Lobato. Não houve final feliz.

A moça se chamava Sílvia Rangel. Deu-lhe seis filhos e nove anos de vida regenerada, numa chácara de Nova Friburgo. Em dezembro de 1922, numa briga de casal, deu-lhe também tiros. Foi o fim da carreira de Afonso Coelho. Tinha 47 anos e a ficha criminal mais atribulada de seu tempo. A Justiça, seguidas vezes desdenhada pela celebridade da crônica policial, foi branda com a assassina. Sílvia deveria ter lá as suas razões. Ninguém ousou duvidar.