• Carregando...
Área devastada da Amazônia em São Félix do Xingu, no Sul do estado do Pará: por décadas, a ausência do poder público tem dado espaço para a tomada de terras pelo poder de fogo das armas | Válter Campanato/ABr
Área devastada da Amazônia em São Félix do Xingu, no Sul do estado do Pará: por décadas, a ausência do poder público tem dado espaço para a tomada de terras pelo poder de fogo das armas| Foto: Válter Campanato/ABr

Sul do Pará atrai colonos desde a ditadura militar

New York Times

Desde os dias da ditadura, o Sul do Pará tem atraído colonos resistentes e exploradores em busca de terra barata, bom solo e uma ampla gama de minerais e frutas raras da Amazônia.

Porém, criminosos notórios também encontraram refúgio aqui. Leonardo Dias Mendonça coordenou um grande empreendimento criminoso em São Félix do Xingu, que incluía uma frota de aviões usados para entregar armas a rebeldes colombianos em troca de drogas, antes de ser condenado, em 2003.

Disputas em São Félix eram resolvidas tradicionalmente com "muitas mortes", disse Waldemir de Oliveira, líder da associação agricultora de São Félix. "Era a lei do mais forte", disse Oliveira. "Fazendeiros colocavam guardas no perímetro de suas terras e ninguém entrava. Quem entrava tinha de ‘sair ou morrer’."

Oliveira e outros residentes afirmam que a violência está diminuindo, mas ainda é uma grande preocupação. Em novembro do ano passado, um dono de um bar local virou a mesa contra quatro homens que chegaram para matá-lo em plena luz do dia, matando todos eles, disse João Gross, arquiteto da área.

Em Vila dos Crentes, o alto ruído de um gerador quase abafou uma recente reunião de moradores, em uma igreja. "Estamos começando a entender que temos de nos envolver com o reflorestamento e parar com o desmatamento", disse Raimundo.

No entanto, esses objetivos são ofuscados pela constante ameaça da violência. Moradores disseram que trabalhadores de uma fazenda ali perto estavam fazendo uma campanha de violência e intimidação para forçá-los a sair. Até jogaram um químico tóxico de um avião sobre a área, matando peixes e outros animais.

Em maio de 2007, moradores encontraram o enteado de Rai­­mundo morto na estrada, com muitos tiros. "Ninguém deve fa­­zer inimigos aqui", disse Éder Rodri­­gues de Oliveira, 26 anos, que afirmou ter crescido com o enteado de Souza. "Todos aqui devem ser humildes."

Na delegacia mais próxima, a mais de 150 km, Álvaro Ikeda disse que assassinatos eram comuns aqui, indicando uma pilha de arquivos contendo informações sobre 11 suspeitas de homicídio em investigação.

As testemunhas muitas ve­­zes têm medo demais para de­­nunciar. "Não posso garantir a vida da testemunha", disse Ikeda. "Não posso nem garantir minha própria vida."

Assim, o delegado decidiu morar na própria delegacia. Ele mantém uma espingarda calibre 12 e um fuzil sempre à mão. "Aqui, sempre estamos armados", disse.

Raimundo Teixeira de Souza chegou à Vila dos Crentes, um abafado local em Eldorado dos Ca­­rajás, no Sul do Pará, há 15 anos, buscando uma terra. Ele comprou oito hectares, segundo afirmou, mas fazendeiros mais poderosos, que percorrem esse território selvagem com rifles pendurados nas costas, teriam forçado Raimundo a vender gran­­de parte da terra por uma mixaria.

Depois, alguém baleou e matou o seu enteado, de 23 anos, no meio de uma estrada da vila, há dois anos, conforme moradores locais. Ninguém foi preso. Na verdade, o novo delegado não tem registro de que o crime chegou a ser investigado pelo seu antecessor. Não é uma surpresa, segundo o policial, considerando que ele tem apenas quatro investigadores para cobrir uma área de grilagem desenfreada e desmatamento do tamanho da Áustria.

"Estamos sendo massacrados", disse Raimundo, de 44 anos, líder de uma associação de moradores local. "Só queremos trabalhar e criar nossos filhos."

Tem sido assim há décadas, dizem os moradores. Por toda essa enorme região da Ama­­zônia, o Estado praticamente é inexistente, seja na forma de policiais ou registros de propriedade de terras, dando espaço para uma cultura desafiadora de tomadas ilegais de terras, muitas vezes realizadas com a ajuda de um cano de espingarda.

Porém, usando uma nova lei, o governo do Brasil está tentando impor ordem nesse território muitas vezes sem lei e, no processo, possivelmente lidar com uma preocupação global bem mais ampla: o desmatamento e a ameaça das mudanças climáticas que vem com ele.

Pela primeira vez, o governo brasileiro está estabelecendo formalmente quem é dono de milhares de hectares por toda a Amazônia, permitindo rastrear quem é responsável pelo desmatamento da floresta para extração de madeira e criação de gado – e quem deveria ser acusado quando isso é feito de forma ilegal.

"O governo finalmente vai saber de quem é essa terra, e quem é responsável pelo que acontece ali", disse Thomas E. Lovejoy, da diretoria de biodiversidade do Heinz Center for Scien­­ce, Economics and the Envi­­ronment, em Washington.

Esta região no estado do Pará é o pior lugar de destruição da floresta do Brasil, e ambientalistas esperam que a nova lei, aprovada pelo congresso brasileiro em junho do ano passado, ajude o governo a finalmente fiscalizar seus limites oficiais em relação ao desmatamento das terras.

No entanto, é uma missão enorme e complicada. Registros de desmatamento de propriedades existem para menos de 4% da terra em mãos privadas por toda a Amazônia brasileira, afirmam membros do governo. No Pará, descobriram falsos títulos para cerca de 130 milhões de hectares, quase o dobro da quantidade de terra que existe de fato, segundo oficiais federais.

Enquanto pequenos fazendeiros como Raimundo estão colocando suas esperanças na lei, muitos latifundiários afirmam ter sacrificado muito sangue e suor para que burocratas em Bra­­sília imponham no­­vas regras.

"Tudo que temos hoje foi construído a partir do nosso próprio desejo de trabalhar", disse Jorgiano Alves de Oliveira, de 68 anos, que cria gado e planta cacau em cerca de 240 hectares.

O problema começou com a ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970, que convidou pessoas a ocupar a Amazônia, mas exigiu que eles limpassem as florestas para ter acesso a terra e crédito.

As crescentes críticas às políticas do Brasil em relação à Amazônia levaram o governo civil da década de 1980 a desenvolver leis que, pelo menos no papel, estavam entre as que mais protegiam as florestas no mundo. Entretanto, com a rara presença de autoridades para fiscalização, as leis não ajudaram a acabar com a grilagem desenfreada de terras.

"Este caos de insegurança legal foi a base mais importante para os incentivos perversos na Amazônia para pilhar, em vez de preservar ou desenvolver, e a constante incitação à violência", disse Roberto Mangabeira Unger, ex-ministro de Assuntos Estratégicos que ajudou a desenvolver a nova lei das terras.

De acordo com ela, que se aplica a mais de 60 milhões de hectares, o governo irá conceder terrenos de até 100 hectares gratuitamente para assentados. Pro­­priedades maiores serão vendidas a preços variados, com ou sem leilões públicos, dependendo do tamanho. As propriedades maiores de 2.425 hectares não poderão ser vendidas sem um ato explícito do Congresso. Até agora, os assentados registraram cerca de 4% da terra separada pela lei, conforme oficiais do governo.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]