Ouça este conteúdo
Daniel Bressan chegou a Brasília (DF) no dia 8 de janeiro de 2023 e só voltou para casa, no interior do Paraná, mais de dois meses depois. Ao longo desse período, perdeu 19 quilos. Ele participou das manifestações na capital federal, tem provas de não ter entrado nos prédios públicos, mas, mesmo assim, no dia 9 de janeiro foi levado, junto a outras dezenas de pessoas, à academia da polícia federal. Dali, seguiu de camburão para o presídio da Papuda, onde permaneceu por 67 dias. “Comia pão e suco de caixinha, mais alguns pedaços de fruta estragada. As refeições eram intragáveis”, ele se recorda.
Ao reassumir a rotina, em prisão domiciliar, por duas ocasiões saiu da área permitida, ambas em função do trabalho no campo. Até que, em março de 2024, decidiu recomeçar a vida na Argentina. “Não avisei ninguém, nem os amigos, nem a família, especialmente meu avô, que me criou e está com 90 anos. Quebrei a tornozeleira eletrônica e atravessei a fronteira”. Por que deixar o país? “Estou sujeito a pegar 17 anos de prisão, sem ter cometido crime algum. Meu carro está bloqueado, não posso vender um pedaço de terra que é meu, estou sem passaporte. Eu não tinha perspectiva nenhuma. E jamais voltaria para a prisão, aquele lugar é desumano.”
Daniel Bressan é um dos mais de 500 brasileiros que se transferiram para a Argentina para evitar a prisão. São aproximadamente 350 manifestantes do 8 de janeiro, mais os familiares que seguiram juntos para uma nova vida, marcada por enormes dificuldades.
Privação e saudades
De acordo com a advogada Marta Padovani, que acompanha de perto a situação dos brasileiros instalados no país vizinho, o clima é de improviso, dificuldades financeiras e saudades de casa. “A situação é precária. Todos tiveram bens e contas bancários bloqueadas. Uma criança de cinco anos que frequenta escola na região, em espanhol, tem dificuldades de convívio e chora porque quer voltar para casa. Casais de idade, com relacionamentos longos, não se veem há anos, porque um dos dois ficou no Brasil para cuidar da família. Senhoras de 70 anos estão isoladas de seus filhos e netos”, ela conta.
As poucas pessoas que conseguem acessar algum tipo de renda tentam ajudar a quem podem. Muitas haviam conseguido trabalho informal, em carros de aplicativo ou comércios. Mas a maioria abandonou os empregos quando, no final do ano passado, cinco brasileiros vivendo no país foram presos. “Está todo mundo com medo de ser detido aqui na Argentina. Eu mesmo abandonei uma proposta de trabalho muito boa e hoje moro de favor no apartamento de um outro patriota”, diz Bressan.
A advogada, que atua junto ao Instituto Gritos de Liberdade em busca de apoio para os brasileiros exilados, relata que todos fugiram porque se consideravam perseguidos. “Todos, quando saíram com a liberdade provisória, já sabiam o que viria pela frente. Fugiram antes da condenação. Fugiram da injustiça.” E não têm para onde ir. “Voltar para o Brasil não é uma opção neste momento. Se retornam, vão para o cárcere. Todos os dias alguém me liga, chorando.”
Cinco presos
Quatro homens e uma mulher estão presos na Argentina. Todos tinham passado por cárceres brasileiros e deixaram o país ao conseguir liberdade condicional. A lista inclui Ana Paula de Souza, de 26 anos, condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 14 anos. “Ela tem problemas de saúde, antes de ser presa foi diagnosticada com tireoidite de Hashimoto. Mas os médicos da cadeia medem febre e glicemia e dizem que ela está bem”, diz a advogada. “O sofrimento emocional que ela está passando é absurdo.”
Os homens são Wellington Luiz Firmino, de 35 anos, condenado a 17 anos; Joel Borges Corrêa, de 46, condenado a 13, além de Joelton Gusmão de Oliveira, de 47 anos, condenado a 16, e Rodrigo de Freitas, de 35 anos, condenado no Brasil a 14 anos de prisão. A advogada diz que eles não têm acesso a alimentação adequada nem a cuidados médicos ou até mesmo a banhos de sol. “A mãe de um deles mora no interior de São Paulo. Está com tumores no cérebro, e ele não pode estar junto dela.”
A advogada diz que não vê outro caminho para os presos e os exilados a não ser a anistia, no Brasil, ou o asilo, na Argentina. “Eles foram condenados a penas desproporcionais. Atualmente, andam pela rua em pânico, com medo de ser presos a qualquer momento. Sofrem com a falta de dinheiro, a dificuldade para comer e trabalhar e a distância das famílias.”
Sem arrependimentos
Nascido há 38 anos em Ariquemes (RO), Daniel Bressan (que já deu entrevista em vídeo contando sua história) se mudou ainda criança para Jussara (PR), um município de 7 mil habitantes que fica a menos de 20 quilômetros de Cianorte (PR). Há duas décadas é interessado por política. “Percebi que as pessoas não conhecem seus próprios direitos, acreditam que funcionários públicos estão fazendo um favor”, diz. Ele já havia participado de outra manifestação em Brasília, em novembro de 2022. Em janeiro de 2023, saiu com um ônibus de Cianorte.
“Chegamos às 4h, ficamos perto do quartel, às 13h30 começamos a caminhada até a Praça dos Três Poderes. Chegamos por volta das 15h30, segui até o espelho d’água, onde já havia confronto. Estava com muitas câimbras provocadas pelo longo trajeto a pé, então voltei ao QG do Exército. Não invadi prédio nenhum, não cometi nenhum ato de vandalismo”, ele diz.
Quando, ao final do dia, os manifestantes que repousavam no local receberam ordem de retornar aos ônibus e desocupar o quartel, o que Bressan viu foi um grupo obediente respeitar ao comando. “Foi tudo muito pacífico. Sem voz de prisão nem nada. Disseram que iríamos passar por uma triagem e seríamos liberados.” Começou então o martírio na academia da Polícia Federal. “Mulheres passaram mal, um rapaz tentou cortar os pulsos, havia idosos, crianças, até moradores de rua. Dali me colocaram num camburão e me levaram até o Presídio da Papuda.”
Dentro do presídio, ele relata que testemunhou abusos e agressões. “Alguns dos guardas nos tratavam como lixo. Um senhor de 70 anos foi agredido porque não saiu da cela de cabeça baixa. Ele nunca tinha sido preso, não sabia que essa regra existia.” A cela onde Bressan ficou comportava oito pessoas, mas abrigava 17. “Fomos tratados sem qualquer dignidade humana.”
Enquanto tenta recomeçar na Argentina, sem se expor à prisão, ele faz planos para o futuro. “Tenho descendência italiana, gostaria de tentar me mudar para a Europa. Não faço questão de voltar para o Brasil, mas para viajar novamente preciso recuperar minha liberdade.” Ele diz que não se arrepende de nada. “Eu não cometi nenhum crime. Não me arrependo. Mas estou sempre a postos, a mala sempre pronta para fugir. Estou preso, ainda que em aparente liberdade.”
VEJA TAMBÉM: