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“Eles são tudo para mim. Se um espirra, eu me preocupo, se viajam e não ligam, eu nem durmo. Ai se alguém fizer alguma coisa contra os meus sobrinhos!”
Vera Lúcia Damokoski, 60 anos, na foto com Bernardo, um dos quatro sobrinhos | Giuliano Gomes/ Gazeta do Povo
“Eles são tudo para mim. Se um espirra, eu me preocupo, se viajam e não ligam, eu nem durmo. Ai se alguém fizer alguma coisa contra os meus sobrinhos!” Vera Lúcia Damokoski, 60 anos, na foto com Bernardo, um dos quatro sobrinhos| Foto: Giuliano Gomes/ Gazeta do Povo

Tabu

Preconceito ainda atinge quem opta por não ter filhos

Embora Vera Lúcia Domakoski e Ecilda Eliza Graeser não tenham sofrido pressão da família e de amigos para se tornarem mães, o preconceito contra a mulher que não teve filhos ainda existe, de acordo com a psicóloga especialista em Gerontologia Mariana Calabresi. "Existe esse tabu, fruto de um machismo arraigado na sociedade, como se a mulher não pudesse se realizar sem a maternidade, como se o sentimento de proteção, de cuidado, não pudesse existir a não ser por um filho." Para ela, a dedicação das tias – muitas educam e até custeiam os estudos dos sobrinhos – é uma prova de que os laços de afetividade são tão fortes quanto os estabelecidos entre mãe e filho.

Para a psicóloga, a tendência é que cada vez mais mulheres se tornem tias sem filhos, já que há cada vez mais mulheres valorizando a carreira e adiando o sonho de ser mãe. Por outro lado, há cada vez mais mulheres que criam filhos sem a ajuda do parceiro e sem se casar, algo que, há 30 anos, quando essas mulheres estavam se tornando tias, não era bem aceito, o que explica o fato de muitas não terem tido filhos. "Antes, a relação entre homem e mulher era mais importante do que a relação mãe e filho. Hoje, isso se inverteu, o que possibilita que elas possam ser mães sem a necessidade de se casar." O futuro é incerto, mas uma previsão é possível arriscar: daqui para frente, no que diz respeito a essas mulheres, os livros, filmes e novelas precisam se atualizar se quiserem refletir os novos tempos.

Elas estão na literatura, no cinema e nas novelas, geralmente retratadas como amargas, solitárias e fiscais da vida alheia. No mundo real, são bem resolvidas, afetuosas e têm uma rotina social tão ou mais intensa do que as mulheres que seguiram caminho inverso. As mulheres que hoje estão na casa dos 60 anos e que decidiram, décadas atrás, não ter filhos e investir na relação com os sobrinhos, são o oposto da "tia solteirona" que ainda persiste no imaginário popular. Ficaram para titia, e daí?Para a professora aposentada de Educação Física Vera Lúcia Domakoski, de 60 anos, o fato não é problema. Pelo contrário: ela se diz "tia de carteirinha" dos sobrinhos Mariana, Bernardo, Juliano e Carla, com idades entre 22 e 36 anos. "Eles são tudo para mim. Se um espirra, eu me preocupo, se viajam e não ligam, eu nem durmo. Ai se alguém fizer alguma coisa contra os meus sobrinhos!", brinca Vera Lúcia, que sempre quis ter filhos, mas teve de adiar os planos por causa da carreira, e depois abandoná-los devido à retirada do útero em função de um mioma.

Quando fala dos sobrinhos, Vera Lúcia se emociona. "Quando eles nasceram, quase me descabelei de tanto chorar. Enquanto cresciam, chegava a gastar quase todo o salário com presentes. Cancelei muitos programas sociais para ficar com eles. Nem sei se as mães aprovavam tantos mimos." Durante a infância de Bernardo e Mariana, os fins de semana eram totalmente dedicados a eles, que pegavam a malinha e a escova de dentes e ‘se mudavam’ para a casa da tia, que sempre morou no mesmo prédio. A estada dava direito a cabanas no meio da sala, músicas tocadas no violão e pintura de camisetas. "Só a tevê tinha de ficar desligada. Aqui em casa, isso é lei."

Depois que os sobrinhos cresceram, Vera Lúcia achou que poderia aposentar os penicos, adaptadores de privada, brinquedos e cadeirinhas. Que nada: o arsenal só aumentou com o nascimento dos sobrinhos-netos Gabriel, de 9 anos, e Mateus, de 1 ano e meio, de quem ela ajuda a cuidar. "Sempre que ele (Mateus) diz uma palavrinha nova, a mãe dele (Carla) me liga. Toda foto que ela tem eu também tenho. É um amor muito grande, e sinto que é recíproco."

Independência

Quem também viveu novamente o prazer de paparicar os pequenos é a professora aposentada Ecilda Eliza Graeser, de 81 anos, com o nascimento da sobrinha-neta Isabele, hoje com 11 anos. A menina, que mora em Botucatu (SP), visita a tia-avó na Páscoa e no Natal. Durante o ano, as duas trocam cartas, para o deleite de Isabele, a quem Ecilda se refere nas cartas como "Senhorita Isabele" ou "a jovem Isabele". Falam também por telefone, quando a menina pode contar as novidades. E mesmo longe, Ecilda está por dentro de tudo. No aniversário de Isabele, ela sempre recebe o convite, mesmo que nunca tenha conseguido comparecer, assim como uma lembrança da primeira comunhão da menina, um mini-rosário e uma fotografia.

Quando o pai de Isabele nasceu, a alegria foi a mesma, assim como outro sobrinho, já falecido. Levava-os para ver o Papai Noel todo Natal, no campo do Coritiba, e fez enxoval para todos, assim como para os sobrinhos-netos – além de Isa­bele, há outros três, já na faculdade. Ela conta que não se casou porque, embora tenha namorado bastante, os relacionamentos não deram certo. "Também não fiz questão, e nunca deixei que se metessem na minha vida. Meus pais também nunca me cobraram, nem os parentes." O lado bom de ter ficado para tia é a independência, conta Ecilda. Embora não costume viajar e sair para festas, o tempo de que dispõe para si mesma é algo de que ela não abre mão. "Posso curtir os sobrinhos sem preocupação, e fazer meus trabalhos manuais. Gosto muito do jeito que está."

Cumplicidade com sobrinho deve ser estimulada

Outro "caso de amor" é o vivido entre a advogada Maria Cecília Palma, de 57 anos, e os sobrinhos Nolan, Damian e Kilian. No Dia das Mães, Maria Cecília é felicitada pelos três como a segunda mãe. A confiança é tão grande que Kilian, que está noivo, pediu a opinião dela na hora de financiar um apartamento. Ela, por sua vez, sempre que faz exames, pede primeiramente a opinião de Nolan, que é médico. "Eu costumava levar os exames ao meu irmão, pai dele, que também é médico. Depois que o Nolan se formou, eu costumo consultá-lo primeiro, depois meu irmão e então meu médico", conta.

Cissa, como é chamada pelos sobrinhos – "Só me chamam de Cissa. Quando falam ‘tia’, é por sacanagem" – não teve filhos por opção, pois quis focar na carreira. "Não me arrependo. Não houve cobrança dos meus pais. Minha mãe não me criou para ser mãe, mas uma cidadã." A relação com os sobrinhos até fez com que ela desse mais valor aos tios, especialmente uma tia que hoje está com 80 anos. "Passei a tratá-la ainda melhor depois que vi como eles me tratavam bem", conta ela, que diz ter ciúmes dos três. Quan­do começaram a namorar, a opinião da tia era essencial. "Está aprovada?", perguntavam. Desde o ano passado, Cissa arrumou mais espaço no coração: agora, também é tia avó de Ian, de 1 ano e 7 meses.

O gerontólogo Guilherme Falcão afirma que essa cumplicidade é importante e deve ser estimulada, principalmente porque as tias podem ser uma referência para a vida dos sobrinhos e uma espécie de curinga no relacionamento muitas vezes tempestuoso entre pais e filhos. "Se elas criam essa confiança, podem ajudar os sobrinhos a fazer escolhas certas, inclusive quando estes não ouvem os pais, amenizando conflitos, já que muitas vezes eles confiam mais nas tias do que na mãe e no pai. Elas podem inclusive ajudar na educação e na formação dos sobrinhos."

Quando fala em educação, no entanto, Falcão alerta: é preciso tomar cuidado para não "estragar" os sobrinhos, e, em hipótese alguma, desautorizar os pais, seja na frente desses, ou longe. Ou seja, nada de educar por conta própria. Se o pai emite tal regra, mesmo que as tias – tão amorosas e ciosas de agradar – não concordem com ela, não devem dizê-lo na frente dos sobrinhos. Podem até dizer que não concordam, e se oferecer para mediar um diálogo, mas não devem intervir. No mais, tal relação, tão benéfica para ambas as partes, deve ser festejada.

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