| Foto: Rodolfo Buhrer/Arquivo Gazeta do Povo

Os paranaenses dos quatro costados costumam contar uma história saborosa. No final da 1960, ao comprar um imóvel na Praça Osório, o então ex-governador Bento Munhoz da Rocha disse a sua companheira, Flora, que "aquele seria seu apartamento de viúva". Ela achava graça. Poderia ir antes do marido, afinal. Ao que ele respondia: "Os Camargo são eternos", numa referência à longeva família da mulher, filha de um dos mitos políticos do estado, Affonso Camargo.

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Bento estava certo. Morreu em 1973. Flora "viveu para contar", merecendo a aura de eterna. Chegou aos 103 anos, completados em 23 de setembro deste ano. Gostava de dizer que buscava um recorde – ir mais longe do que sua irmã, Eleonora da Veiga, hoje com 110 anos. Perdeu essa aposta, mas ganhou todas as outras. A discreta esposa de Bento – eleito o "Paranaense do Século" numa pesquisa da Gazeta do Povo, – morreu ontem, no início da tarde, de causas naturais, no posto de a mais marcante primeira dama de que se teve notícia. Não é exagero dizer que há um antes e depois de Flora.

Flora Camargo seguiu à risca os protocolos das meninas bem-nascidas. Estudou no Cajuru e no Sacre-Coeur, cultivou tanto as letras quanto as habilidades manuais. É curioso. Por boas décadas não só confeccionou seu próprio guarda-roupa como se deu por satisfeita com ele. "Conservava várias peças, numa espécie de galeria, e nos mostrava quando a visitávamos", conta a amiga e parceria na Academia Paranaense de Letras (APL), Chloris Casagrande Justen, atual presidente da instituição.

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A moça prendada se casou aos 17 anos – os Camargo e os Munhoz da Rocha eram próximos, nada mais natural. Tiveram cinco filhos: Caetano, Mitzy, Daisy, Sandra e Suzana. Em 1951, com a chegada de Bento ao poder, a surpresa. Flora manteve a discrição própria de quem foi educada por freiras francesas. Os amigos, inclusive, sempre a destacam como "a grande observadora". A questão é que o governo a que assistiu colocou o Paraná nas trilhas da modernidade, um fato que não a pegou distraída. "Tenho para mim que Flora foi educada para viver esse papel. Não decepcionou", diz a amiga "de uma vida inteira", a escritora Liamir Hauer, 91 anos.

"Gosto de dizer que Flora era feminista antes mesmo dessa palavra existir", resume a nora Gilda Carnasciali Munhoz da Rocha. Prova disso é que não se acomodou aos rapapés palacianos. Nos idos da década de 1950, enquanto o marido erguia o Centro Cívico, para citar um de seus feitos, ela fundava a assistência social no estado. Criou o projeto Cidade dos Meninos – para a dita "infância desvalida" – e mais de 400 postos de puericultura. Parte desses projetos sumiram em gestões posteriores – um desacato que, também em silêncio, nunca perdoou. "Marca de sua elegância", comenta a jornalista Rosy de Sá Cardoso, que soma mais de 60 anos de vida profissional, tempo em que observou a grande dama.

Não se tratava de uma mulher para ser lembrada pela roupa que usou numa recepção do Palácio Iguaçu. Era ilustrada. Ainda que à sombra de um orador como Bento, dava-se com as palavras, um gosto que não conseguiu manter preso aos diários privados. Escreveu uma dezena livros, o primeiro, Apontamentos, em 1954. Publicou colunas na revista O Cruzeiro e jornal Gazeta do Povo, entre outros veículos. Em 2008, somando já 97 anos, as escritoras Chloris Justen e Adélia Woellner lutaram para lhe fazer justiça, apoiando sua candidatura à Academia Paranaense de Letras. Ocupava a cadeira n.º 10. O tempo e a idade logo a impediram de desfrutar da vida de acadêmica – mas Flora sabia se comunicar como poucos, inclusive por cartas. "Continuou presente, a seu modo. Era um ícone", reforça Chloris.

Serviço:Flora Munhoz da Rocha está sendo velada na Capela Vaticano (Rua Hugo Simas, 26), até as 15 horas de hoje.