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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Preste atenção na descrição que Gabriel García Márquez faz da primeira vez em que viu o mar, aos 3 ou 4 anos de idade. "O avô me levou pela mão através daquele descampado ardente, andando depressa e sem me dizer para que e, de repente, nos encontramos em frente de uma vasta extensão de águas verdes com arrotos de espuma, onde flutuava um mundo de galinhas afogadas."

Galinhas afogadas?

Quem me chamou a atenção para esse relato estranho foi o Romualdo. Ele se recorda de ter lido uma entrevista do escritor colombiano em que este contava que, ao ser questionado por um tradutor se ele teria se referido a peixes-galinha (uma espécie que existe na Colômbia) e não às aves, sentiu que sua memória de infância havia sido estragada pela necessidade de explicações.

Procurei na internet a entrevista de García Márquez que Romualdo citou e só achei outra, do tradutor brasileiro, Eric Nepomuceno, que conta sua versão. Gabo teria dito que nem sabia por que escreveu "um mundo de galinhas afogadas". E riu muito.

O livro em questão é Viver para contar, que García Márquez abriu de forma genial, com uma frase que explica tudo: "A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como recorda para contá-la".

Diante disso, fica a suspeita de que tudo que ele contou sobre sua vida pode não ter acontecido exatamente como relatou. Mas que importância tem a falta de exatidão se o resultado é um livro delicioso de se ler? Como cobrar precisão se as nossas próprias lembranças são sempre afetadas pelo estado emocional em que nos encontramos tanto no momento em que o fato ocorre quanto no momento em que o recordamos? Em conversas de família, um irmão lembra de um detalhe e outro irmão lembra de outro. Às vezes as lembranças se complementam, às vezes se desmentem. Foi bom ou foi ruim? Foi triste ou nem tanto? Depende de quem recorda.

Os espaços físicos em que estivemos na infância são invariavelmente lembrados como maiores do que eram na realidade. Nas memórias da criança um pequeno quintal se transforma em um grande campo repleto de recônditos misteriosos. Um retorno aos lugares da infância é sempre um retorno a um mundo que parece ter sido reduzido magicamente.

As galinhas de García Márquez, se é que existiram, talvez fossem duas ou três e não "um mundo", talvez fossem espuma formada pelas ondas. Quem sabe a espuma branca fez o garotinho de 4 anos pensar nas galinhas que ele via no quintal de casa? Fosse lá o que fosse, o espantoso é que o escritor tenha recuperado essa memória distante e decidido contá-la sem temer que parecesse boba ou absurda. Contadores de histórias precisam de coragem para abrir o baú de seus segredos.

No mesmo capítulo, García Márquez diz sobre a época em que viajou com a mãe, aos 22 anos, retornando à casa do avô: "Até a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro do que no passado, e portanto as minhas recordações da aldeia não estavam ainda idealizadas pela nostalgia". O interesse no passado, sabia ele, deturpa as lembranças, idealizando aquilo que queremos valorizar. Contar uma velha experiência é como reinventar o que já foi reinventado várias vezes pela nossa cabeça.

Quando voltou a ver aquele pedaço de praia e mar, García Márquez achou tudo muito feio ("Era horrível", resumiu). Contou, então, a sua mãe sobre as galinhas afogadas da primeira visita e ela concluiu que era uma alucinação de criança. Crianças parecem ter muitas dessas supostas alucinações, oriundas da capacidade de aceitar coisas extraordinárias (adultos tentam imediatamente destrinchar o extraordinário, o que significa tirar-lhe a magia), como uma maré de galinhas afogadas. Outra fonte de alucinações é a memória, que constrói e reconstrói lembranças como lhe convém, tornando mágico o que era banal, tornando banal o que era mágico.

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