• Carregando...

O juiz federal Sérgio Fernando Moro, 34 anos, titular da 2.ª Vara Federal Criminal de Curitiba, especializada em Lavagem de Dinheiro e Crimes contra o Sistema Financeiro, é radicalmente contra o foro privilegiado, inclusive para a sua classe. Em entrevista à Gazeta do Povo, o magistrado que ficou famoso por condenar gente graúda por lavagem de dinheiro, por exemplo, nas contas CC5 do Banestado, expôs os motivos da posição. "Ele é instrumento de impunidade. É um resquício aristocrático." O magistrado defende que todos sejam julgados por juízes de primeira instância, afirmando que os tribunais não tem vocação estrutural para receber e instruir ações originárias. Ele citou como exemplo o caso do Mensalão, cuja ação penal contra autoridades e ex-autoridades foi proposta no Supremo Tribunal Federal (STF) há um ano, no entanto, ainda não foi recebida. O juiz Sérgio Moro esteve em Brasília na sexta-feira, onde participou do movimento nacional organizado pela Associação de Juízes Federais do Brasil (Ajufe) contra a extensão do foro privilegiado para ex-autoridades e para ações de improbidade administrativa. As mudanças estão sendo discutidas no Congresso Nacional, nas votações da Proposta de Emenda Constitucional n.º 358/2005, que entre outras alterações no Judiciário, prevê a extensão do foro privilegiado. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

Gazeta do Povo – Por que os juízes federais são contra a extensão do foro privilegiado para as ex-autoridades na esfera penal?

Sérgio Moro – Na avaliação da Magistratura Federal, o foro privilegiado é instrumento de impunidade. É um resquício aristocrático e acaba tornando o sistema penal ineficiente. O foro atualmente existente é ruim, mas ampliá-lo é ainda pior. Os juízes federais, por meio da Ajufe, são absolutamente contra qualquer tentativa de ampliação do foro privilegiado. Se houvesse algum movimento no sentido de modificar o foro privilegiado, deveria ser no sentido ou de eliminá-lo ou de extingui-lo, mas jamais de ampliá-lo.

O que representa criar o foro privilegiado nas ações de improbidade administrativa?

Atualmente o foro privilegiado só existe em matéria penal. Quando a autoridade que tem o foro sofre uma denúncia, uma ação penal por algum crime, ela vai responder perante o foro privilegiado dela, um tribunal recursal ou tribunal superior em Brasília (DF). A idéia para a ação de improbidade é que isso também ocorra para ela. Atualmente, todas as ações de improbidade, independentemente de quem seja o réu na ação, mesmo que seja uma autoridade com foro privilegiado na ação penal, elas tramitam e são julgadas normalmente em primeira instância, depois com os recursos previstos na lei. Mas pela proposta, também a ação de improbidade ficaria sujeita a foro privilegiado.

Quais seriam os prejuízos para a sociedade de passar a competência para os tribunais julgarem também as ações de improbidade administrativa?

Já há uma constatação generalizada que os tribunais estão estruturados e funcionam bem para julgar recursos, mas quando eles têm de dar andamento a ações e instruir ações penais, por exemplo, a tramitação em regra é muito lenta, de tal forma que dificilmente os processos chegam ao seu fim. Então, o foro privilegiado acaba servindo como um instrumento de impunidade. Isso por falta de vocação estrutural dos tribunais para dar o devido andamento a essas ações penais originárias (como as de foro privilegiado). Então, havendo uma ampliação, não só vai estender a ineficácia para os processos de ex-autoridades, mas vai incrementar ainda a dificuldade que temos, porque vai aumentar o número de ações penais originárias também nos tribunais recursais e superiores. Eles já estão abarrotados de processos, vão ficar ainda mais abarrotados de processos que são bastante complexos.

No bojo, a extensão do foro privilegiado para ex-autoridades e para os réus de ações de improbidade administrativa representam o que para a sociedade?

Tribunais cheios de processos, processos sem fim e aumento da impunidade. Por exemplo, o caso que a imprensa chamou de mensalão, apesar de se reconhecer que ele está nas mãos de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) muito competente, que pretende dar um andamento célere a essa ação, o fato é que ela foi proposta no primeiro semestre do ano passado e até o momento sequer há decisão do recebimento da denúncia. Então veja, quase um ano e o processo mal começou, porque o recebimento da denúncia é o seu ato inicial.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já não decidiu que a extensão do foro privilegiado a ex-autoridades é inconstitucional. Por que a PEC foi apresentada?

No final do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi editada uma lei estendendo o foro privilegiado para ex-autoridades. Ao julgar uma Adin, que atacou a lei, o STF entendeu que houve inconstitucionalidade, porque ele não poderia ser ampliado por lei. Por conta dessa decisão é que surgiu a tentativa de extensão do foro a ex-autoridades, agora não mais por lei, mas por emenda constitucional. Caso a emenda seja aprovada o assunto pode voltar ao Supremo, mas por ser a extensão por emenda, pode ser que o Supremo a repute constitucional.

O ideal é que a questão esteja no Congresso. Então, cabe aos congressistas decidirem a questão, refletindo os sentimentos e os anseios da população. E a sociedade civil organizada e as pessoas mais envolvidas com a Justiça Criminal serem contra o foro privilegiado, porque ele é um instrumento de impunidade.

Qual é a chance de não ser aprovada a extensão do foro privilegiado para ex-autoridades?

O que nos preocupa especificamente é que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) já foi aprovada num primeiro turno no Senado Federal. Ela está para votação na Câmara. Embora tenhamos a crença de que o Congresso, especialmente a Câmara que neste momento está com a proposta, não vai cometer o atentado democrático de aprovar a emenda, pelo menos na parte do foro privilegiado. É evidente que nós, cidadãos, preocupados com a impunidade temos de nos mobilizar e chamar a atenção dos congressistas para as conseqüências da aprovação da emenda. Esperamos que o Congresso não faça isso. Agora existe o risco da PEC ser aprovada.

O senhor é a favor ou contra o foro privilegiado? Por quê?

Como juiz criminal sou contra a impunidade. A Justiça criminal no Brasil precisa de um choque de eficiência, evidentemente dentro do marco dos Direitos Humanos, do respeito aos Direitos Humanos. Nessa linha de ser contra a impunidade, o foro privilegiado é um dos instrumentos que acabam favorecendo a impunidade, o que é especialmente grave. Isso em relação às altas autoridades do estado, sejam elas juízes ou dos poderes Executivo e Legislativo. Quanto maiores os poderes, maiores devem ser as responsabilidades, e o foro privilegiado segue uma lógica inversa, porque protege quem tem mais poderes, privilegia. Na prática torna as altas autoridades irresponsáveis pelos seus atos. Isso ofende nosso senso moral de Justiça. Assim, o mais grave da impunidade acaba sendo exacerbado pelo foro privilegiado. Então, sou radicalmente contra, inclusive para juízes. E acho um verdadeiro absurdo a idéia de ampliá-lo. Se ele já é ruim, pior ainda é ampliá-lo.

Estão chamando o foro privilegiado de foro da impunidade. Por que isso ocorre?

Como eu disse, os tribunais recursais e superiores estão estruturados para uma coisa, que fazem bem, que é julgar recursos. Infelizmente pelo nosso sistema processual, os tribunais, em geral, estão assoberbados de trabalho. Quando se coloca uma ação penal originária [devido ao foro privilegiado] para começar e ser instruída no tribunal, isso acaba comprometendo o cotidiano do tribunal. E normalmente não funciona.

São raros os casos de ações penais originárias que chegaram a um bom final perante os tribunais recursais ou superiores, pela saturação deles e pela falta de estrutura e recursos. É muito mais razoável julgar esses processos em primeira instância, reservando aos tribunais o julgamento dos recursos. E pergunto: por que todo cidadão comum pode ser processado na primeira instância, e a autoridade não pode ser, da mesma forma. Além de tudo, de servir como fator de impunidade, é contrário ao espírito da democracia, de que todos devem ser considerados iguais perante a lei. É um verdadeiro resquício aristocrático.

Mas os juízes têm condições de julgar o presidente da República, governadores, prefeitos e parlamentares (estaduais e federais) sem sofrer pressões políticas?

Olha, podemos pensar no sistema de Justiça Criminal de diversos outros países. A maioria não adota o sistema de foro privilegiado. Um exemplo de democracia que nos espelhamos, os Estados Unidos, onde não existe foro privilegiado. Então, isso não é uma anormalidade, ou uma impossibilidade. Mas ninguém está imune a esse tipo de pressão.

Os magistrados de tribunais recursais e superiores estão imunes a esse tipo de pressão?

O sistema atual, a Constituição traz uma série de garantias para os juízes de primeira instância e para os magistrados dos tribunais resistirem a esse tipo de pressão. Se ele não resiste porque há algo de errado para o juiz. As mesmas garantias que tem um ministro do Supremo, a inamovibilidade do seu cargo, por exemplo, tem o juiz de primeira instância. Então, não é essa a questão. E normalmente os processos contra as altas autoridades têm grande visibilidade na imprensa, o que acaba funcionando também como uma espécie de fiscal da sociedade para que eles sejam conduzidos sem pressões indevidas.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]