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Direto da central

O setor de Serviços Especiais da prefeitura forma, aos poucos, um perfil dos mortos curitibanos. Confira uma leitura dos dados de 2007:

• De que morrem os curitibanos: doenças cardíacas (17,98%); doenças respiratórias (15,38%); câncer (11,71%); falência múltipla (8,67%); infecção generalizada (7,55%); homicídio (8,3%); doenças cerebrais (4,06%); acidentes de trânsito (3,77%).

• A idade dos mortos: de 71 a 80 anos (19,41%); de 81 a 100 anos (16,09%); de 61 a 70 anos (15,62%); de 51 a 60 anos (13,62%); de 41 a 50 anos (9,42%); de 21 a 30 anos (7,26%); de 31 a 40 anos (6,69%); de 11 a 20 anos (4,70%).

• As vítimas de homicídios: de 21 a 30 anos (40,04%); de 11 a 20 anos (25,5%); de 31 a 40 anos (18,48%).

Tem quem esbugalhe os olhos todas as vezes em que a antropóloga Sandra Jacqueline Stoll, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), conta qual é o tema de sua pesquisa: as representações da morte na sociedade contemporânea. Nem é preciso prestar atenção na frase inteira. Ao simples pronunciar da palavra "morte" tem quem solte um sonoro "credo em cruz". Fora os que só pensam. Mas não: Sandra, que atua nas áreas de Antropologia Urbana e Antropologia da Religião, não estuda a morte, nem cemitérios e afins, mas acaba passando por esses assuntos, para espanto dos que achariam exercícios de álgebra uma tarefa mais divertida.

A jornada de estudos, inclusive, segue sobre trilhos. Em 2003, a pesquisadora publicou pela Edusp o livro Espiritismo à brasileira, obra que traduz sua investigação sobre o rumo muito particular que a doutrina de Allan Kardec tomou no país. E para o ano que vem, deve dar início a um pós-doutorado na Universidade de São Paulo, para o qual tem se aquecido com leituras como o ensaio Diante da dor dos outros, da intelectual e ativista norte-americana Susan Sontag, que morreu em 2004.

Sontag tem sido uma boa companheira de viagem nesse momento em que Sandra está com os olhos fixos nas fórmulas modernas encontradas para cultuar os mortos.

A norte-americana – que um dia chegou a escrever que as fotos de guerra e de tragédias estavam tão banalizadas que tinham perdido o poder de comover as pessoas – se redimiu, no final da vida, substituindo a tese da indiferença por uma outra: a de que o público é, sim, capaz de reagir e se mobilizar, "diante da dor dos outros." "Tudo vai depender da maneira como as imagens são produzidas", diz Sandra, sobre um tema que lhe é caro: as reações à morte se modificaram.

Ela está tão certa disso que desautoriza o velho discurso de que o mundo moderno baniu a morte de vez de suas preocupações. Diz-se por aí que os cemitérios vão acabar, tornando-se verticais ou se reduzindo à poeira dos crematórios. E que se vive como se não fosse morrer, cultuando a plástica perfeita e as soluções milagrosas para rejuvenescer.

Sandra admite que as casas – um dias vistas como espaços ideais para morrer, "sob o controle doméstico" – foram substituídas pelos hospitais, onde quem administra o passamento é um terceiro, contratado para isso. E que os cemitérios deixaram de ser os espaços por excelência para cultuar os mortos.

"Cemitérios e casas se tornaram lugares como qualquer outro. Muda o modo de morrer e os rituais. A medicina higieniza a cidade, regula roupa e os banhos dos doentes, alerta sobre riscos de doenças. Velórios passam a ser rápidos. A sociedade recusa e recalca a morte, mas isso não quer dizer que o assunto ficou preso num armário", frisa.

Internet

Não faltam exemplos da tese de Sandra. Hoje já existem blogs de gente morta, redigidos por parentes e amigos daqueles que já se foram; e peças dedicadas aos mortos no YouTube. A rede também serve de abrigo para cartas e documentos dos falecidos. "Rejeita-se um determinado tipo de representação da morte. Mas ela vai se manifestar pela literatura, cinema, jornal e a própria internet. Ou num momento como os funerais de João Paulo II", ilustra a pesquisadora.

A lista de representações contemporâneas da morte passa também pela ação planejada dos terroristas islâmicos e pelos monges de Myanmar, a antiga Birmânia – que estão pagando com a vida para acabar com a ditadura sangrenta de Than Shwe –, para citar dois temas do noticiário. Contudo, a manifestação que mais interessa à pesquisadora nesse momento são as romarias ao Triângulo Mineiro, onde atuava Chico Xavier, para psicografar cartas dos mortos coletivamente. "É um ritual público, um modo diferente de ritualizar a morte. O debate entra por outra porta."

É cada vez mais comum nas novelas, por exemplo, a figura do personagem que "parte para o andar de cima", mas retorna para bagunçar o folhetim. Indiretamente, esse recurso pode estar sendo usado para ajudar o público a lidar com a frustração da morte ou para projetar fantasias e crenças sobre a eternidade. O cinema idem. A tela grande é pródiga em traduzir os sentimentos do homem de hoje, seja em cenas grotescas de corpos explodidos e violência bruta, seja em trabalhos mais sensíveis. "Vamos muito ao cinema ver filmes que mostram a morte. Os de hoje em dia, inclusive, expõem esse momento com muito mais detalhes do que há 30, 40 anos. Será que temos tanta aversão a esse debate assim? Se esse tipo de cinema faz sucesso é porque há um prazer catártico em assisti-lo", comenta Sandra Stoll, remetendo ao fenômeno Tropa de Elite, de José Padilha.

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