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Seguro só atrás das grades

A reportagem da Gazeta do Povo ouviu três comerciantes da região metropolitana de Curitiba que se viram obrigados a trancar suas lojas com grades por causa dos assaltos. Em Fazenda Rio Grande, Josélia Miranda, de 48 anos, trabalha há 11 anos com grades na mercearia instalada há 12 anos no bairro Santa Terezinha. Mesmo assim ela já sofreu cinco assaltos, todos à mão armada. Os marginais agiram com violência e deixaram muitos prejuízos. "A gente nunca recuperou nem uma bala, pra dizer a verdade", queixa-se. "Eu tenho coleção de BO (Boletim de Ocorrência) e não resolve nada."

Na Vila São José, em Colombo, Mauro Batista dos Santos, 56 anos, teve o mercadinho assaltado 12 vezes em cinco anos, três delas após instalar a grade. "Porque eu tava com o portão aberto", diz. Para evitar nova distração, gastou R$ 600 para instalar um portão eletrônico. Ainda em Colombo, no Jardim Paloma, Letícia dos Santos também se viu obrigada a instalar grades na entrada do seu bar. Josélia, Mauro e Letícia são apenas três exemplos do quanto o brasileiro está acuado, dentro e fora de casa. Há quem ganhe, e muito, com essa insegurança.

Na esteira do medo coletivo, o faturamento do setor de segurança privada dobrou em oito anos, saltando de R$ 7 bilhões, em 2002, para R$ 14,2 bilhões, em 2009, segundo a Federação Nacional de Empresas de Segurança e Transporte de Valores. Os números oficiais revelam só uma parte dessa indústria, que inclui serviços de vigilância patrimonial, segurança pessoal, escolta armada, transporte de valores e cursos de formação. Não estão incluídos os gastos com cerca elétrica, alarme, cão de guarda e outros meios.

"Hoje o cidadão gasta na sua proteção mais do que o governo investe em segurança pública", diz o presidente do Sindicato dos Vigilantes de Curitiba e da Federação dos Vigilantes do Paraná, João Soares. A conclusão é óbvia: o setor só cresce porque antes crescem os índices de criminalidade. Quarto lugar no ranking, atrás de SP, RJ e MG, o Paraná viu seu número de vigilantes subir de 13 mil para 22 mil desde 2002. Já o efetivo da segurança pública mal chega a 20 mil, somando-se policiais civis e militares.

A estatística não conta os vigias clandestinos. Para cada profissional registrado há outros dois ilegais, conforme o Sindivigilantes. Os piratas somam 45 mil no Paraná. Já no Brasil, os vigilantes legalizados passaram de 320 mil para 450 mil desde 2002.

Folga perigosa

"Todo mundo faz"

Policial militar

Você costuma fazer serviço privado de segurança?

A maioria da Polícia Militar hoje em dia faz. Uns 90%, 85% fazem.

O que leva o policial a fazer vigilância no horário de folga?

O salário. O salário é muito defasado. A gente trabalha muito para receber muito pouco.

O comando da Polícia Militar não sabe que isso acontece?

Saber, sabe. Uns são até donos de empresa de segurança. Todo mundo sabe, todo mundo faz, todo mundo precisa. Só que a gente, como praças, precisa mais.

Tem oficiais que fazem serviço de vigilância?

Claro que tem.

Em nome de laranja, possivelmente.

Com certeza. Chefes de shoppings, a maioria são coronéis.

E esses oficiais usam o serviço dos PMs?

Com certeza. Alguém ganha com isso. Às vezes quando tem viatura parada na frente do shopping, é ordem do comando.

É frequente também usar o veículo oficial da polícia para fazer segurança privada?

Frequente. Os tais PB (pontos base), passar em tal rua, em tal comércio, alguém tá ganhando com isso.

Para evitar a vigilância em horário de folga, quanto precisaria estar o salário de um policial?

No mínimo três mil reais. A gente sai todo dia sem saber o que vai encontrar. A criminalidade só tá aumentando. Se não ajudar os policiais, como é que a gente vai enfrentar os bandidos? Tomar tiro pros outros aí por mil e seiscentos reais...

Qual que é o sentimento que isso te desperta?

A gente entra na polícia pensando uma coisa. Pensa que vai mudar o mundo, vai salvar a população e a própria polícia não dá condições para isso. A gente pensa, agora eu sou policial militar, vou cuidar bem da minha família, vou ter um emprego fixo, um salário digno, mas passa um ano e você vê que é diferente do que você pensava. Vai ter que se submeter a fazer bico.

Bandido "amigo"

"Quem não paga é roubado"

Afonso, (nome fictício), empresário

O que você tem feito para contornar a insegurança?

Tem que pagar bandido para cuidar da nossa própria segurança, porque segurança não existe aqui na região.

Você está pagando?

Pagando o próprio bandido para cuidar, para ter segurança no meu comércio. Não sou só eu. Quem não fizer é roubado.

Por que ter de recorrer à marginalidade?

Se você chamar a polícia, é duas horas e meia, três horas pra aparecer. Se você ligar na Polícia Civil não tem gasolina, tá em ocorrência, só tem uma viatura.

Você já recebeu alguma ameaça, se não pagar pode ter algum tipo de represália?

Todo mundo recebe. E daí tem de pagar o bandido para ele ficar te cuidando, e ele fica te olhando 24 horas. Se não paga o salário em dia, você tem que arcar com as consequências.

A polícia...

Não, a polícia esquece, esquece todo mundo. Não dá pra contar com a polícia, tem de contar com o bandido para te cuidar.

O que esse tipo de situação te leva a pensar?

Se você for pensar no que pode acontecer, de depender de governo, de prefeito, de secretário da Segurança, você acaba não saindo de cada, acaba não sustentando a sua família. De repente vira mais um marginal. É complicado, mas hoje você vive num mundo de Al Capone. O cara leva a tua grana para poder te cuidar.

Você se sente lesado?

Lógico, por que pagar 980, 970, mil reais para um bandido, sendo que eu pago meus impostos e que poderia empregar mais um pai de família? Seria mais um pai de família trabalhando e levando o sustento para dentro do seu lar.

Você deixa de gerar um emprego para sustentar uma família para sustentar um bandido.

Para sustentar bandido. A gente fala em 900 reais, mil reais, mas não, o bandido vale o que ele quer, e a minha segurança vale o que ele pede. Não só a minha, de mais comerciantes da região.

Afonso sabe que é mau negócio, mas não vê outra saída. Paga dois salários mínimos por mês para manter a loja aberta. Quem impôs o preço foi o "dono" daquele pedaço de Piraquara, um dos recônditos sem lei no entorno de Curitiba. Ele até poderia fazer como outros empresários, inclusive da região central da capital, que cedem à extorsão policial para ter alguma segurança, mas o marginal está mais acessível. Se a polícia quase não aparece, o bandido está presente 24 horas. "Hoje você vive num mundo de Al Capone", diz Afonso. Essa é a lógica da venda forçada de segurança. Na Itália isso se chama máfia, no Rio é milícia, em Curitiba ainda carece de nome próprio.

Em Pinhais, também na região metropolitana, Onório paga R$ 100 toda vez que a viatura da Polícia Militar escolta o malote de dinheiro da sua empresa até o banco. Em Colombo, Isidoro dá mesada de R$ 200 aos policiais militares que fazem rondas mais assíduas na porta do seu comércio. Afonso não é o único a pagar bandido para ter proteção, Onório e Isidro não são os únicos a subornar policiais fardados. Com medo, só contam detalhes por meio de nomes fictícios, pois qualquer identificação de pessoas ou lugares resultaria em represálias. Pelo que fazem, são também causa e efeito do estágio pré-falimentar da segurança pública no Paraná.Em seu próprio favor, esses empresários usam o argumento da necessidade e do menor custo. Em última análise, sai mais barato pagar uma taxa fixa mensal aos marginais do que viver a instabilidade dos assaltos constantes. "O bandido vale o que ele quer, minha segurança vale o que ele pede", resigna-se Afonso. E a polícia? "Não dá pra contar com a polícia, tem de contar com o bandido pra te cuidar. Tem de pagar o bandido pra ele ficar te cuidando. E ele fica te olhando 24 horas. Se não pagar o salário em dia, aí você tem que arcar com as consequên­cias", explica. "Não sou só eu, tem mais comerciantes. Quem não fizer é roubado", garante.

O exercício da extorsão começa cedo, de maneira nada ingênua. "Eles querem cigarro, querem um doce, escolhem um refrigerante, você tem que dar pra se livrar de ser assaltado", diz um dono de bar em Piraquara. "Se você se sujar com eles e não der, aí você tá perdido." São meninos entre 15 e 18 anos, discípulos de Al Capone que em vez do charmoso terno risca de giz usam camiseta e chinelo de dedo. São aprendizes dos gângsteres de periferia que, a exemplo daquele que extorque Afonso, controlam determinado território e se acham no direito de cobrar por proteção. Uma proteção – é importante mencionar – contra eles próprios.

Violência artificial

Não bastasse o assédio de bandidos ou de policiais corruptos, comerciantes de Curitiba e região têm sido vítimas de uma onda de violência artificial produzida por grupos que não têm como propósito o furto ou o roubo. Vândalos são contratados para depredar residências e arrombar lojas para, em seguida, alguém visitar as vítimas oferecendo vigilância. Quem se recusa a contratar os serviços volta a sofrer ataques. A Gazeta do Povo denunciou a prática há dois anos, mas o problema persiste. Mais comerciantes se somaram às vítimas. O valor cobrado varia conforme o porte da empresa. Desta vez a reportagem encontrou casos que variam de R$ 80 a R$ 900.

O caso do lojista Álvaro, da zona Sul de Curitiba, é um exemplo elucidativo do procedimento padrão que empresas clandestinas parecem seguir. A loja dele foi arrombada há oito meses. Levaram algumas mercadorias. Três dias depois, uma empresa pirata batia à porta oferecendo vigilância. Ele não fez caso. Preferiu instalar alarme. Duas semanas depois, a porta pantográfica foi arrombada. Passados cinco dias, outra pessoa surgiu com a mesma proposta. Na primeira vez poderia parecer coincidência, mas na segunda o golpe ficou evidente. Álvaro entendeu o recado. Acabou cedendo.

Não só ele se viu obrigado a vergar às pressões para não fechar as portas. No bairro Cajuru, um microempresário, que nem por nome fictício quer ser identificado, diz não ter encontrado alternativa. A loja de materiais de construção foi arrombada três vezes. Não levaram quase nada, e ele só entendeu do que se tratava quando o mesmo sujeito apareceu pela segunda vez oferecendo serviços de segurança. O comerciante resistiu mais uma vez, mas no terceiro arrombamento fez as contas e concluiu que seria mais barato ceder à extorsão do que ficar pagando os consertos da loja. Ele se sente refém dos gangsteres de periferia que criam o problema para vender a solução.

Esses grupos atuam mais nas periferias da capital e cidades vizinhas. No anel central de Curitiba – mas não só ali – a máfia da segurança usa farda e insígnia. Para se proteger dos criminosos, comerciantes encontraram uma alternativa igualmente fora da lei: contratam policiais para trabalhar no horário de folga, o que é proibido pelo regimento da Polícia Militar. Outros, como Onório e Isido­ro, usam até a estrutura da corporação. Em Fazenda Rio Grande, a representante de uma loja de artigos populares, que paga policiais fardados para dar segurança no fechamento de caixa, dá o tom da desfaçatez: "O que tem de errado nisso?", disse à reportagem.

Geralmente são os próprios policiais que fazem a abordagem, revela uma empresária. Depois de registrar o assalto à loja, um PM esperou os colegas saírem para oferecer seus préstimos. Ela não aceitou, embora soubesse que outros fazem. "Ele já é pago com dinheiro público para nos dar segurança, então seria como pagar duas vezes", diz. Há comerciantes que preferem o meio-termo. Não entregam dinheiro, mas fazem agrados aos policiais para tê-los com mais frequência na porta da loja. Tem açougue que dá carne, lanchonete que fornece lanche, supermercado que doa alimentos.

Inversão de papéis

Os novos arranjos na segurança pública inverteram alguns papéis no Paraná. Em vez de prender criminosos, policiais agora disputam com eles o mesmo mercado clandestino de vigilância. O assunto não é exatamente novidade para as autoridades do setor. Há dez anos o Sindicato dos Vigilantes do Paraná tem denunciado a atuação ilegal de policiais no ramo da segurança privada. "Não há mudanças porque parece que o comando da Polícia Militar faz vistas grossas", diz o presidente do sindicato, João Soares. "Enquanto isso a marginalidade continua crescendo nas periferias, onde comerciantes contratam até bandidos para cuidar do seu estabelecimento", constata.

"A coisa mais comum é você ir num supermercado, numa farmácia, numa casa lotérica, num posto de gasolina e ver viaturas da Polícia Militar fazendo segurança privada. Princi­palmente à noite, na hora de fechar o caixa", afirma Soares. "Isso não é de graça, não. Isso é pago para os policiais", confirma. "Por isso a gente vê constantemente as pessoas reclamando que precisam de uma viatura para atender uma ocorrência e leva uma hora, uma hora e meia para ela chegar ao local do incidente", observa. "Polícia é para proteger o cidadão, para isso nós pagamos nossos impostos. Segurança privada é outra coisa."

Soares denuncia não só a concorrência desleal dos policiais, mas o risco à segurança pública. "O policial que faz bico não descansa no dia de folga e vai para as ruas cansado, estressado, muitas vezes prestando um mau serviço à sociedade", diz. Ele lembra ainda que empresa séria não bate de porta em porta para vender serviço de vigilância. "Quem fizer isso deve ser denunciado à Polícia Federal", diz. Segundo ele, instalar o caos em determinada região para depois oferecer esses serviços é uma prática muito frequente. O perigo pode ser grande para quem contrata segurança pirata.

De acordo com o Sindicato das Empresas de Segurança Privada do Paraná (Sindesp), empresas clandestinas não têm critérios, contratam pessoas sem habilitação, sem curso de formação, não recolhem encargos sociais, não dão seguro de vida aos funcionários. Em 2008 o Sindesp encontrou na Junta Comercial 650 registros de empresas de segurança no estado, mas só 72 tinham autorização da Policia Federal para atuar. As empresas regularizadas hoje somam 88, mas o sindicato não sabe informar se depois disso o número de clandestinas aumentou ou diminuiu. A meta da diretoria empossada há uma semana é aumentar para 150 o número de regularizadas até 2014.

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