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A cozinheira aposentada Terezinha do Carmo Melo, 49 anos, ainda estava na idade de brincar de bonecas quando pilotou um fogão pela primeira vez. Tinha 7 anos e lembra de ter subido em um caixote para alcançar as panelas. Por sorte, gostou da brincadeira. Ainda menina perdeu a mãe. Um ano e pouco depois, o pai. Na família de seis órfãos, cabia a ela cuidar das refeições enquanto os irmãos mais velhos cultivavam uma roça no município de Jardim Alegre, perto de Ivaiporã, no Norte do Paraná, a 364 quilômetros de Curitiba.

Quando se casou, aos 13-14 anos de idade, não podia ser chamada de uma mulher feita, mas, como se diz, já era uma cozinheira de mão-cheia. Embora o marido adorasse os doces que Terezinha aprendeu a fazer no velho fogão a lenha da mãe, o casamento acabou. Sozinha e com duas filhas pequenas, recorreu às receitas aprendidas no campo. Foi a salvação da lavoura. Já em Curitiba, empregou-se como cozinheira em empresas. Entre um panelão de arroz e feijão e outro (apenas no último serviço eram 120 refeições/dia), levava a classe operária ao paraíso com um cardápio à base de doces de abóbora, amendoim, goiaba, tomate, abacaxi, cerca de 30 no total, tudo muito parecido com a mesa de quitutes preparada pela avó mineira do Menino Maluquinho, o célebre personagem do cartunista Ziraldo. Hoje, ela faz parte de um grupo de pessoas que vive na capital, mas que faz questão de manter hábitos tipicamente de interior.

A obsessão por fazer doces acabou rendendo fama à "moça da cozinha", detentora de nada menos do que 21 diplomas de arte culinária, dos quais se orgulha e lista sem a memória falhar. "É minha paixão. A cozinha tendo um metro por um e meio, para mim já está bom. Faço a festa." Inclusive dos outros. Há quem lhe telefone tarde da noite, atormentado pela vontade incontrolável de comer açúcar, avisando que vai passar para apanhar uma cocadinha preta ou um docinho de abóbora com coco e "desculpe incomodar". Terezinha atende os pedidos, até porque no apartamento em que mora, na Água Verde, não há tanto espaço assim para a verdadeira feira de produtos "direto da roça" que produz sem destinatário certo. "Sabe o que é: não posso ver uma fruta se perdendo", justifica-se do exagero.

Parece coisa de quem fala com samambaia, mas a cozinheira afirma ter a impressão de que alguns produtos da terra a escolhem. É olho no olho. Por conta desse dom sobrenatural, já se viu subindo as escadas até o segundo andar com uma quantidade de frutas que ela e o filho temporão, Bruno Henrique, de 10 anos, levariam três reencarnações para consumir. Com o agravante, pasmem, de que nenhum dos dois é louco por doce. Terezinha tem inacreditáveis 48 quilos, peso-pena para quem vive tão sujeita à divina gula. Bruno, segue o exemplo. Só não abre mão de uma receita original da mama, não patenteada, o biscoito de rapadura. "É muito simples fazer...", diz, meticulosa, enquanto desfia a receita, determinando cortes, texturas e temperatura do forno. "E pronto... eu não acho nada difícil, sabe." Nem fazer doce de laranja azeda – que exigiria paciência sobrenatural até de monge tibetano. "Ah! Eu ponho de molho no bicarbonato", explica, acenando para o pequeno balcão de granito em que parece ser impossível, em dias de fúria gastronômica da dona da casa, caberem a abóbora, as goiabas, as laranjas, os abacaxis e as bananas, mais as maçãs e as pêras. Além, claro, dos mamões verdes. São imprescindíveis. "Faço um doce tropical de mamão. Eu não venço, de tanto que as pessoas gostam". Apenas por esses dias, foram seis quilos da famosa iguaria, por encomenda.

O dia da mulher que trouxe Jardim Alegre para Curitiba começa às 6h30 e pode passar da meia-noite. O único motivo para encostar a porta da cozinha e sossegar é se houver jogo de futebol, em especial do Atlético Paranaense – time do qual se levanta da cadeira para falar. Caso o rubro-negro não esteja em campo, a jornada de trabalho depende da quantidade de cachos de banana, por exemplo, que Terezinha acabou trazendo para casa numa passadinha rápida pela feira – a duas quadras de onde mora.

"Quando vejo uma penca amadurecendo, hum, é perfeito para fazer banana seca". As cascas, se forem bonitas, também vão para o fundo da panela. O mesmo acontece com as cascas de berinjela. Para quem duvida, abre a geladeira abarrotada de vidros e destampa um pote, mostra a textura, o cheiro, o sabor. É quase científico. "Uma delícia. Ninguém resiste." Não duvide. Viva a casca da banana!

E para quem juraria de pés juntos que a roça, no fundo, não cabe na cidade, aguarde até Terezinha botar o olho no quintal do vizinho. Da janela dos fundos de seu apartamento – que tortura – ela vê um pé de mexericas abençoado por Deus e bonito por natureza. E dá-lhe destilar uma receita de bolo de mexerica que faz a turma "lamber os beiços". "Eles não sabem o que estão perdendo." Da janela do lado vê um pé de laranja com os galhos vergando, de tão carregado. Tempos atrás, o tal vizinho das laranjas tinha também maracujás indo para o brejo, tantos eram. O olho mágico de Terezinha bateu na fruta e se deu o tal de feedback. Uma cesta de maracujás acabou vindo do terreno ao lado e virou uma versão do doce tropical, aquele, do mamão verde. Tempos depois, um doce de figo não deu certo na casa onde abundam laranjas e maracujás. Ao saber da pequena tragédia, a doceira vestiu o avental velho de guerra, tomou as rédeas da situação e salvou o tacho de ir para a lata do lixo. "Bobagem, vizinho! Amigo de cerca é para essas coisas."

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