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Valéria (o nome é fictício) ainda passou dois anos se recusando a aceitar a verdade, até que resolveu largar o cigarro, depois de quase 35 anos de tabagismo. "O médico disse que eu tinha um enfisema. Agora tenho só 20% da capacidade pulmonar", conta a dona de casa, que chegava a queimar quatro maços de cigarro por dia, mas está sem colocar um sequer na boca há dez dias. A voz ainda sai um pouco rouca, ela não pode fazer movimentos bruscos e já teve desmaios no meio da rua. A memória falha às vezes, mas Valéria acredita que viverá mais que os cinco anos que o médico lhe deu quando diagnosticou o problema. E vai além: ainda quer coordenar um grupo do Nicotina Anônimos (NicA), que reúne ex-fumantes e pessoas que estão tentando deixar o vício. Seus membros definem o grupo, que comemorou 10 anos na semana passada, como uma "irmandade". Para respeitar um dos princípios do NicA, todos os ex-fumantes entrevistados nesta reportagem ganharam nomes fictícios.

Foi o desejo de auto-afirmação que levou muitos ao vício. Valéria começou aos 12 anos, porque gostaria de fazer parte do grupo dos "mais velhos". Com a mesma idade, Cristiano experimentou o primeiro cigarro em uma festa, com amigos. A diferença entre ele e a dona-de-casa é que a carreira de fumante do rapaz deve ser curta – pelo menos é isso que ele, agora com 13 anos, pretende. Por isso se internou na clínica Quinta do Sol, no Jardim das Américas, que tem seu programa próprio para combater a dependência do tabaco e ainda cede uma sala para as reuniões do NicA.

"Já parei uma vez, mas voltei para minha cidade, no interior, e começou tudo de novo", conta o adolescente. Norberto, um dos fundadores do NicA, explica que Cristiano não está sozinho. "A taxa de ex-fumantes que voltam a colocar um cigarro na boca depois de algum tempo é de 70%", diz. A recaída é um dos principais fatores que desestimula quem pretende parar. "Alguém sempre fala do tio da cunhada da empregada que jogou o maço fora e nunca mais fumou, e o fumante passa a achar que todos conseguem, e só ele não. Ele fica deprimido e fuma mais ainda", descreve Norberto, que entrou no vício porque "para ser homem era preciso fumar".

Júlio, hoje coordenador do NicA, começou a fumar com 13 anos e por quatro manteve o vício escondido do pai, até que entrou no ensino médio. "Foi quando ele disse que eu podia fumar na frente dele, era praticamente um prêmio", recorda. Norberto também escondeu a prática por três anos. O coordenador do grupo diz que o cigarro não atrai a condenação dada ao álcool e outras drogas por não ter "custo social", já que ninguém atropela dez pessoas em um ponto de ônibus ou bate na mulher porque estava com a cabeça cheia de nicotina. "Se você beber um litro de uísque, vai causar problema para alguém. Se fumar cinco maços, não acontece nada", resume Júlio.

Valéria ainda passou dois anos consciente de seu problema de saúde antes de procurar ajuda. Outros ex-fumantes alegam os motivos mais diversos para cortar o cigarro. Ricardo, que também luta contra outros vícios, quer voltar a ter moral em casa para aconselhar a família. "Minhas duas filhas dizem que eu não tenho como pedir a elas que parem de fumar", conta. Outro motivo é o financeiro. Com quatro fumantes em casa, ele estima que já entregou alguns carros zero quilômetro à indústria do tabaco. Apesar de uma chapa do pulmão não ter revelado problemas, o construtor também se preocupa com a saúde. "O médico disse que meu corpo era uma McLaren, mas pilotada pelo Satoru Nakajima", recorda.

O zelador Pedro é mais direto: "chegou um dia em que eu me senti um otário por estar fumando." Descobriu o NicA, que à época se chamava Fumantes Anônimos, e passou a freqüentar as reuniões. "As primeiras semanas foram terríveis. Comprei uma daquelas bolinhas para aliviar a tensão e nunca chupei tanto Tic Tac na vida", lembra. Com 25 anos ele não conseguia correr atrás de uma bola. Aos 55, marca seus golzinhos. "Quem não pratica esporte não consegue ter muita idéia do que acontece com quem pára de fumar", diz Norberto, que agora anda 8 quilômetros diários e, em dias de chuva, faz exercício em casa com a ajuda de um DVD de Tina Turner. O olfato de Valéria melhorou, bem como o paladar de Pedro.

Serviço: Nicotina Anônimos: 9616-6156 e 3267-6969. Reuniões: terças-feiras, 19h30, na Quinta do Sol – Rua Coronel Francisco H. dos Santos, 1.180, Jardim das Américas; quintas-feiras, 20 horas, Rua Francisco Derosso, 715, Fundos, Xaxim.

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