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A estudante de Veterinária Débora: passando pela prova de fogo na faculdade | Arquivo/ Gazeta do Povo
A estudante de Veterinária Débora: passando pela prova de fogo na faculdade| Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo

Check list

Mulheres e homens transexuais são minoria na população e encontram dificuldades em série para terem sua identidade reconhecida.

1. Na escola enfrentam resistências para usar o banheiro mais próximo de seu gênero [não raro, por isso, têm infecções urinárias] e para que conste o "nome social" na lista de chamada e em áreas específicas da documentação administrativa. São alvo preferencial de bullying .

2. Na vida civil podem ser representados por ONGs, na reivindicação de direitos, mas via de regra o Ministério Público exige ações individuais, o que costuma individualizar e enfraquecer a análise dos casos de bullying no trabalho, na escola e nos demais setores da sociedade.

3. No campo jurídico, passam por uma série de exigências. A mudança de nome é dada com mais facilidade para quem já fez a operação de adequação sexual. Os que não fizeram, precisam de laudo psicológico e social e pelo menos três meses de acompanhamento. O país só dispõe de quatro centros especializados nesse atendimento preliminar. No Paraná, só duas trans sem cirurgia conseguiram mudança do nome civil.

4. No campo da saúde, apesar dos avanços no atendimento, há muita lentidão. No Hospital de Clínicas da UFPR, uma consulta com endocrinologista pode demo,ar oito meses. O tempo de espera pelas cirurgias chega há dez anos.

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As travestis e transexuais são habitantes de um Brasil desconhecido. Formam uma conta de menos. Não se sabe ao certo quantas são, como vivem e tampouco do que morrem. Restam apenas três certezas: 1) a população trans está ausente das salas de aula; 2) impera o mito de que só quem fez cirurgia de adequação sexual pode mudar de nome; 3) desses dois erros demandam todos os outros. "É uma tragédia particular", resumem os observadores, ao afirmar que a "transfobia escolar" – termo usado para traduzir a máquina de excluir trans no sistema de ensino – atira gerações de jovens na violência, na exploração sexual e no vazio profissional.

Tão assustador quanto admitir que existe um mecanismo assim é concluir que uma medida simples poderia mudar o final da história: respeitar o "nome social" na lista de chamada. É discussão antiga. Tem suas raízes na década de 1970, mas engrenou há 15 anos. Nesse tempo, mereceu discussões acaloradas, uma dezena de pareceres e até uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), movida em 2009 por grupos de gênero. A bandeira desses manifestantes ultrapassa o debate do "nome social" e põe a mão noutro vespeiro, cujo desenlace não será visto tão cedo: a burocracia para conseguir a mudança do nome civil.

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SAIBA MAIS: Os avanços na aceitação do "nome social"

Mesmo com tanta pressão popular, não passa um dia sem que um professor se recuse a chamar meninos e meninas pelo nome com o qual se enxergam, ignorando haver uma equação direta entre desrespeito à identidade e evasão escolar. Mesmo quando o direito acata "a pele que essas pessoas habitam", a educação continua dizendo não. "Existe a supremacia dos direitos humanos. A ONU afirma a igualdade de gênero e mesmo assim, acontece", protesta o deputado federal Angelo Vanhoni (PT-PR), que em abril passado enfrentou derrota na Câmara ao ter de esmiuçar a questão no Plano Nacional de Educação, o PNE. (veja infográfico)

Defesa

As escolas se defendem. Alegam observância ao que está escrito na matrícula. Risco de processo administrativo. Argumentam que os alunos não fizeram a adequação sexual cirúrgica. O que ignoram? Que não é a cirurgia que concede à pessoa a condição transexual. Que com essa resistência estão abrindo as portas da escola para que os alunos trans saiam e não voltem mais, expondo-os ao pior dos mundos. "As pessoas transferiram as crenças pessoais para os espaços públicos, esse é o problema", resume a psicanalista e pesquisadora de gênero Letícia Lanz.

Os poucos dados disponíveis sobre o assunto são contundentes. Das 70 pessoas que usam os serviços do recém-criado Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais, o Cepatt, na antiga Saúde Pública, em Curitiba, quase 100% reclamam de conflitos relacionados ao uso do "nome social". O problema não poupa nem as faculdades, nas quais as trans se fazem cada vez mais presente. O que os reclamantes relatam beira o horror, em especial quando a resistência em "chamar pelo nome" atinge os adolescentes.

"Temos relatos de alunos transexuais que enfrentam problemas urinários. Não há banheiros para eles. E muitos sofrem com os professores. Houve quem chamasse uma aluna trans de lixo", relata o ativista e doutor em Educação Toni Reis, que se debruçou sobre cinco casos envolvendo menores de 18 anos, em cinco cidades paranaenses diferentes, e levou os casos ao Ministério Público.

Embate

Reis não foi sozinho para a briga. Levou junto a ALGBT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), o Grupo Dignidade e o Transgrupo Marcela Prado, os dois últimos com sede na capital. Os manifestantes saíram vitoriosos do corpo-a-corpo. No início de junho, o Centro de Atenção à Criança e Adolescente e o de Educação lançaram um parecer, desde já histórico, sobre o uso do "nome social".

"É o documento mais completo já publicado no Brasil", garante o ativista, sobre o texto de 14 páginas. Se for aceito sem reservas pelo Conselho Estadual de Educação – no qual uma comissão especial estuda a orientação – estudantes com mais de 18 anos podem pedir por si só o uso do "nome social". Entre 16 e 18 anos, o interessado solicita o nome, desde que tenha documento assinado pelos pais. Se tiver menos de 16, os pais têm de requerer.

Até então, o MP se mostrava reticente em recomendar o uso do "nome social" para adolescentes. Entendia que nessa fase a sexualidade não estaria formada. Para fazer os promotores Murillo Digiácomo e Hirmínia Dorigan de Matos Diniz reverem seus conceitos, o movimento social relatou histórias de meninos e meninas trans apartados da escola. Mostrou-se a "violência simbólica", como diz Letícia Lanz, a que estão expostos os "sem-banheiro" e "sem-chamada". "A escola só está preparada pra lidar com rígidas divisões de gênero homem e mulher", reforça a pesquisadora.

Estigmas ainda impedem os direitos trans

O respeito ao "nome social" funciona como um antídoto. Se os educadores assumem o aluno por primeiro, neutralizam o bullying, um mal que fatalmente assalta o adolescente trans. Se for difícil, há outro exercício universal: colocar-se no lugar de quem pede ser chamado por esse ou aquele nome. Uma trans já tem de devassar sua intimidade na frente dos outros a cada vez que vai pagar uma conta com cheque ou cartão de crédito.Descobrir que a escola repete a mesma prática é um motivo forte o bastante para abandoná-la.

É o que acontece na maioria das vezes, embora essa afirmação seja empírica. O Censo de 2010 quantificou também as variantes de sexualidade. Levantou o número de uniões homoafetivas – 60 mil casais. Mas caiu num erro comum. De forma indireta tornou a entender a população trans como parte da parcela que se declara homossexual. Colocou dois grupos diferentes debaixo do mesmo guarda-chuva, fazendo o que os especialistas consideram uma simplificação grosseira. Homo e trans não são sinônimos.

Para além das razões simbólicas e científicas, há uma razão prática. Um aluno que se identifica como homossexual não vive o conflito do nome ou da aparência. O mesmo não se pode dizer do estudante trans, em especial quando já iniciou a reconstrução do corpo, com tratamento de hormônios. Não há estudos seguros, mas é o momento do abandono escolar, gerando o efeito cascata: sem estudos, sem profissão, resta a exploração sexual e a prostituição.

Um dos mitos que pesa sobre a população trans é a de ser lasciva, hipersexualizada. É um estigma – o que o grupo pede, via movimento social, contraria essa imagem: quer usar o banheiro adequado, "nome social" e ter condições mínimas de continuar os estudos.

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