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A arte-educadora Mariane Cristina Buso deveria registrar uma nova profissão: consultora em casas de madeira. Há cerca de 15 anos, com a ajuda do marido, o administrador de empresas Luiz Carlos Dunaiski, ela se tornou bacharel no assunto ao adotar uma residência construída por seu avô, Victor Cristopharo Gusso. Nos idos de 1920, a construção ficava numa chácara, até que o terreno em volta foi loteado, a Rua 24 de Maio passou pela frente, o dono se foi, mas a casa feita com pinheiro-do-paraná e o pé de butiá no jardim dianteiro sobreviveram a chuvas fortes e a duas décadas de inquilinato. Durante quatro anos o casal lixou paredes, trocou ripas e sarrafos e lavou telha por telha. Até desanimar.

"Com o que gastamos, dava para comprar um apartamento", diz Mariane. Foi o que ela e Luiz Carlos fizeram – precisamente uma cobertura, no Água Verde, onde não havia estalos no assoalho nem ataques de nervos à procura de quem vendesse tábuas de cambará para reposição. Mas já era tarde. A dupla, literalmente, decidiu voltar para casa e criar ali a filha Mariú, alistando-se em definitivo numa tribo urbana ainda não-catalogada: a dos adoradores de casas de madeira.

Trata-se de uma minoria. Informalmente, seriam 12 mil moradias do gênero na cidade, o que representaria menos de 10% das 180 mil licenças para construção que a prefeitura arquiva desde 1950. De qualquer modo, tudo indica que se trata de uma espécie em extinção. Segundo Júlio Mazza, superintendente da Secretaria Municipal de Urbanismo, em 2004 a PMC expediu apenas 40 alvarás para casas de madeira, 3% do total no período. No mesmo ano, de 616 novos cadastros do IPTU, míseros 24 eram de casas de tábua. É daí para menos – ano passado, a prefeitura não recebeu nenhum pedido de construção no ramo, tendência que permanece em 2006.

Casados com a casa

Achar os adoradores de casas de madeira é fácil. Basta uma caminhada distraída pela Rua Assis Gonçalves, no Água Verde; pela Avenida Nilo Peçanha, no Bom Retiro; ou pela Avenida Nicola Pellanda, no Umbará – entre outros –, para deduzir que alguns heróis se dedicam pacientemente a lixar e pintar paredes, uma tarefa que exige quatro vezes mais braço e mais tinta, e aturar marceneiros e pedreiros que, em vão, se perguntam por que aquela gente não transforma tudo em alvenaria, nem que seja em prestação. "A gente ainda enfrenta preconceito. Casa de madeira é sinônimo de falta de dinheiro", comenta Mariane – moça criada em casa com laje, tijolo, concreto, uma combinação que agora dispensa.

Na Vila Leão, não muito longe de Mariane, o linotipista aposentado Aírton de Jesus Pereira e sua mulher, Rosinha Gonçalves Pereira, a Neca, também não se empolgam com as facilidades do cimento armado. Em 1961, quando inauguraram a casa de madeira com fachada de alvenaria, tinham de atender vizinhos à porta. "Eles pediam para ver por dentro. Não havia muita coisa em volta – três ou quatro casas, só. A nossa era a mais bonita da rua", lembra Neca. Com o tempo, alguns casarões podem ter roubado a cena da morada dos Pereira, construir ficou mais fácil, mas o afeto venceu a batalha. No terrenão da Rua São Mateus a paisagem permanece a mesma de 45 anos atrás.

"É uma aventura", reconhece Aírton. "Para pintar o teto tem de fazer uma arataca", diz, sobre a combinação de escada e mesa juntas para vencer a altura do pé-direito. Ao todo, aquela mão de tinta que qualquer um dá em uma semana, ali consome até três meses. Mas que nada. Aos domingos, filhos e netos põem os alicerces à prova. Um deles diz que descansa a mente debaixo do teto cinzinha e da calçada de caquinhos.

Nos domínios de Mariane e Luís Carlos, idem – a memória tem um preço: entender os humores da madeira todos os dias. Tem de ser meio Indiana Jones. Uma única janela mede 1,70 metro de altura e precisa ser tratada na lixa fina para não virar matéria-prima para depósito de demolição. Sem dizer que volta e meia, uma camada de tinta de vagão da RFFSA, usada pelo avô, funcionário da Rede, emerge das profundezas das paredes.

Tem lá o seu encanto. O avô, uma tia que não se casou, a mãe que foi criada ali, entre outros, são moradores imaginários da casa de Mariane e Luiz Carlos. "Nesse porão, ele guardava frutas, para refrescar", aponta. A chave é enorme, assim como as tramelas. Os adoradores são mesmo uma confraria à parte, que inclui órfãos do recinto – gente que nasceu em casas de madeira e jura, por Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, que há de voltar. É o caso do arquiteto Fernando Canalle, cujo depoimento sobre a arquitetura típica de Curitiba poderia figurar numa daquelas folhinhas de datas que ficam atrás da porta.

"A casa de madeira é a gentileza de uma cidade. São como um objeto da nossa intimidade", desmancha-se Canalle, para quem essas residências que rangem à noite "falam com a gente, dão retorno afetivo e valem cada pulôver e ventilador", necessários para enfrentar os rigores térmicos dessas moradias. Ele tem uma preferida – nas Mercês, perto do Colégio Dom Bosco, com mais ou menos 4 x 9 metros, duas águas, "um contêiner da memória". Era mais ou menos isso que Mariane, Luiz Carlos, Neca e Aírton queriam dizer. Está dito.

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