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Livro: Sentimentos na história: linguagens, práticas e emoçõesAutores: Renata Senna Garraffoni, Andre Mendes Capravo e Marion Brepohl. Editora: UFPRPáginas: 345Preço: R$ 35

O nazismo existiu por que Hitler foi um líder que soube persuadir as pessoas, por causa do partido nazista que tinha uma forte ideologia ou em consequência da propaganda feita na época? Para muitos historiadores, o extermínio em massa seria explicado pela junção de todos estes fatores. Mas, para outros, só existe uma questão que se sobrepõe às demais: os sentimentos das pessoas, capazes de alterar o rumo da História.

"O nazismo não se explica pela ideologia da limpeza étnica pregada por Hitler, mas, sobretudo, pelo triunfo da irracionalidade e a exacerbação dos sentimentos", explica a historiadora Marion Brepohl, uma das autoras do livro Sentimentos na história: linguagens, práticas e emoções, lançado em dezembro pela editora da Universidade Federal do Paraná.

Marion questiona como Hitler conseguiu convencer uma população tão civilizada, como a alemã, a aderir à causa. Para a pesquisadora, não é uma questão de ignorância, mas de atração e repulsão, ligada aos sentimentos.

Usando este exemplo para se pensar como os senti­­mentos mudaram e mudam o mundo, Marion explica, em entrevista à Gazeta do Povo, esta nova visão dos historiadores – que, entretanto, ainda é polêmica e não encontra consenso na academia.

Como os sentimentos podem mudar mais a História do que a própria ideologia? Um fator não está ligado ao outro?

Não fazemos esta dicotomia, ideologia versus sentimentos. A ideologia é sem dúvida uma das mais importantes ferramentas desse debate, porque ela é uma ortodoxia. Sou capitalista, socialista, anarquista. Existe um discurso a partir do qual vou agir. A ideologia, no entanto, é carregada de signos comoventes. A linguagem do partido socialista, por exemplo, faz uso da mão erguida, da foice e do martelo, da cor vermelha. Hannah Arendt dizia que a ideologia é a lógica de uma só ideia, projeta um determinado fim da história e ninguém pode pensar diferente. Quando você olha para os sentimentos, passa a perceber como o indivíduo internalizou a experiência e o que o fez agir de uma forma e não de outra.

Mas medir os sentimentos é algo complicado para um historiador, não?

Sim, mas há formas de compreender isso, através da estética, da literatura e das mídias – principalmente do século 19 e 20 em diante. É o discurso não proferido, mas expresso a partir, por exemplo, de diários e até de biografias. Sobre o nazismo, você tem toda uma simbologia antissemita. A pessoa poderia dar risada e dizer "que cara ridículo com este bigode", mas a população votou nele, o aclamou, o assistiu. São estas formas com as quais trabalhamos.

Entra nessa área também a teoria da receptividade?

Estudamos não apenas ela, mas a teoria do discurso, da iconografia (imagens), da semiótica e até da linguística. Porque, quando eu falo na França que "a sociedade se revolta contra a inflação" e, no Brasil, publico na imprensa que "o país foi afetado pela inflação", isso nos diz muito dos sentimentos da população. Na França existe uma tradição democrática enorme, por isso é a sociedade que se revolta. No Brasil, é a ideia de que o país foi afetado e que as elites vão consertar, por isso se dá a notícia nesta conotação. A cor que uma pessoa usa para pintar um quadro também está relacionada com os sentimentos. Usar cor clara em oposição à escura, cor quente ou fria. O autor da pintura pode até não pensar no que está fazendo, mas, no inconsciente dele, ele colocou ali um amarelo por algum motivo.

É nesse sentido que o livro fala das paisagens urbanas como outra forma de entender os sentimentos de um dado período?

Perguntamos a nós mesmos por que São Paulo é associado à figura do bandeirante (com estátuas e tudo mais), o Rio Grande do Sul ao gaúcho e no Paraná se cultiva a figura do homem plantando o café? É como se disséssemos que em São Paulo só havia bandeirantes e no Rio Grande do Sul só tivesse população gaúcha. Obviamente que se ocultam negros e índios. A questão é que toda vez que crio um fato, oculto outro – e a História fica parcial. Por que se exalta o cafeicultor em detrimento dos pescadores de Paranaguá ou dos plantadores de mandioca? Nossa questão é tentar responder isso, de como os sentimentos lidam com esta hierarquização.

Que outras questões foram influenciadas pelo sentimento?

O Marx, por exemplo, não era operário. E nem Adam Smith, o fundador da economia burguesa. Mas o que houve? Na questão de Marx, uma profunda identificação com o sofrimento do trabalhador, do camponês que sai do campo e vai para a cidade e se torna um desempregado. Veja, ele primeiro se torna um desempregado para depois ser um trabalhador urbano e um industrial. No caso de Smith, ele fala de necessidade de compaixão. Por que ambos foram tão importante? Porque são inteligentes, porque tiveram boas ideias, mas, sobretudo, porque tiveram uma boa recepção, maior do que um outro autor que nasceu no mesmo dia e com ideias também bem interessantes. É esta aferição que fazemos.

E a questão da religião? Ela é explicada pelos sen­­timentos?

Ela funciona no eixo tolerância e intolerância. Se eu aceito que meu Deus é absoluto, por exemplo, não posso achar que seu Deus é igual ao meu. Por isso, usa-se a palavra tolerância religiosa. Apesar de eu achar que você está errado, eu tolero. Isso não é uma lógica secular, mas do crente, e é inerente a ele, aos seus sentimentos. Não podemos pensar religião como partido político, não posso trazer para a esfera pública. É uma coisa privada, que acaba em tensão constante. E o conflito religioso ocorre quando a esfera individual atinge a pública. E isso é muito difícil de não acontecer.

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