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Memória

No auge da fama, salão no Garcez tinha 115 funcionários

Entre 1974 e 1979, Fheliciano Macan e seu companheiro Edson penavam para andar nas ruas de Curitiba sem serem importunados. O povo queria autógrafo. E também um horário para cortar o cabelo – tarde da noite, que fosse. A fama de Fheliciano veio em definitivo com o salão Turandot – o nome é em homenagem à ópera homônima de Giacomo Puccini, favorita da dupla.

Fheliciano alugava o 3º andar inteiro do Edifício Garcez – quase 1000 m² só para as tesouradas. Sua voz de barítono comandava um batalhão de 115 funcionários. Foi nessa época que ganhou um prêmio internacional da L’Oréal. Fheliciano carimbou o passaporte na Argentina, Paraguai e Chile. E deu aulas para ninguém menos que Marly, aquela do salão famoso.

Mas a vida tem das suas. Há 14 anos Fheliciano trabalha em um conjunto de três salas e 70 m², na Praça Zacarias. Parte da clientela já se foi, é verdade. Mas a culpa pela guinada, para o rei da tesoura, também está na modernidade, que às vezes atropela. "O shopping desqualificou o trato e massificou o trabalho. É tudo número. O 18 tá ali, pega o 33 lá. Não pode funcionar assim."

Curiosidades

Pai durão, chá mate na Assembleia e penetra na boate. Confira algumas curiosidades da vida de Fheliciano Macan:

Pai

Italiano bravo, o pai de Fheliciano só ficou a par dos caminhos do filho quando ele completou 18 anos e se formou no curso de cabeleireiro. "Ele não sabia de nada. Ou fingia não saber."

Mate na Assembleia

Na adolescência, Fheliciano trabalhou por cinco anos na Assembleia Legislativa do estado. Começou como contínuo. Entre outros afazeres, servia cafezinho. "No verão, era mate gelado." Aprendeu datilografia e, "graças à Dona Inês", foi nomeado oficial datilógrafo. Não se esquece do dia em que ouviu: "O deputado Anybal Cury lhe chama em suas dependências."

Barrado na Marrocos

Menor de idade, Fheliciano não era autorizado a entrar na boate Marrocos, onde penteava as moças que lá se apresentavam – entre elas, Ângela Maria. O problema sempre era convencer o porteiro Cachimbo de que a presença do cabeleireiro era indispensável.

Fofoca

Fheliciano é falante e bem informado. "Vejo tevê, adoro computador. Mas fofoca, nos meus salões, nunca teve. Não tenho tempo para isso."

Cine Palácio

Antes de virar Turandot, um dos maiores salões de Curitiba entre 1974 e 1979, o 3º andar do edifício Garcez era a casa do Cine Palácio, que fechou devido a um incêndio.

Mané no carrinho

Nos anos 1960, Garrincha, Djalma Dias, Djalma Santos, Bellini e cia. tinham um time "de brincadeira" chamado Os Milionários. Jogavam em um campinho da Rua São Luís, no centro do Rio de Janeiro. Quando estavam para começar o jogo, sempre faltava Mané. "Para passar a ressaca, colocavam Garrincha em um carrinho de mão e davam diversas voltas em torno do campo."

      "Fheliciano e Edson Cabeleireiros, muito bom dia. Você tá boa? Quando quer vir? Amanhã à tarde? Tá bom, meu amor. Estou dando entrevista sobre os meus 50 anos de profissão, e você faz parte disso!" Antes de atender ao telefone e marcar hora com outra cliente de longa data, Fheliciano Macan baixa o volume da Rádio E-Paraná. Também deixa à mostra, na antessala do salão que mantém por 14 anos no décimo andar de um edifício na Praça Zacarias, Centro de Curitiba, o prêmio Gralha Azul de melhor maquiagem que recebeu em 1989. "Sou o único cabeleireiro com um troféu de artes cênicas."

      Caso falasse, a tesoura de Fheliciano seria uma coluna social ambulante, já que ouviu histórias cabeludas de políticos, autoridades, celebridades de outrora, como Hebe e Tônia Carrero, e músicos do calibre de Lápis. Todos eles já ofereceram a cabeça ao curitibano de 68 anos, pioneiro no quesito "salões de beleza comandados por homens". Há cinco décadas, os tradicionais barbeiros da cidade tremeram com o talento daquele menino, então gago, que passeava no antigo Campo do Poti com uma revista Capricho a tiracolo.

      O primeiro cabelo? Peripécia de um garoto de 13 anos. Em uma tarde, sua vizinha se emperiquitava para um baile daqueles no Círculo Militar. Queria um penteado "banana", o mesmo que a atriz Debora Kerr esbanjava na capa da dita revista. "Fui lá e fiz." E ficou bom, Fheliciano? "Ficou lindo, imagina." Nos arredores da Praça 29 de Março, começava um burburinho sobre a identidade do cabeleireiro desconhecido.

      Na altura do número 500 da Rua Princesa Izabel, Fheliciano vivia com sua mãe, que o apoiou em tudo. Com o pai, "calabrês de lascar o chicote", e com seus três irmãos. Passava o tempo ouvindo programas da Rádio Nacional em um jurássico Zenith. E não imaginava entrar em uma escola de profissionais de beleza àquela época. Mas aconteceu, a convite da mãe da vizinha premiada.

      O único exemplar masculino no salão do edifício Pedro Demeterco era ele – o "H" do nome é cabalístico, e hoje Fheliciano não quer ver seu xará famoso do Congresso Nacional nem pintado de rosa, "aquele maluco que arrasou meu nome". No curso, passou em todos os testes. "Fui muito bem, imagina." Penou para conseguir os contos de réis necessários para pagar a empreitada, e resolveu trabalhar lá mesmo para resolver a parada. Aos 15 anos, o garoto já era assunto no bate-papo entre Emílio, Ivo Santos, Daguile e Seu Mano, os mãos-de-tesoura mais famosos de Curitiba na época.

      Seu grand debut foi quando entrou no Salão do Bonim, no final dos anos 1960. "Atrás tinha uma pensão, onde moravam as meninas de fino trato." Lá, penteou as moças que se apresentavam na boate Marrocos, do rei da noite Paulo Wendt; e outras, cujo destino possivelmente seria a Jane 1, a Jane 2. Ou quem sabe a Graceful. Foi lá que virou amigo de Dercy Gonçalves e Ângela Maria, fez um black power em Lápis – "com uma escova que trouxe da Nigéria". E que se tornou o Fheliciano, ainda procurado por gente como a pianista paranaense Dalilla Morgenstern, que veio de São Paulo em busca da tesoura renomada.

      "Sabe por que corto aqui? Porque os cabeleireiros de hoje só sabem o que está na moda. O Fheliciano faz cabelo para todas as idades. E até um especial, capaz de cobrir a careca das mais velhinhas."

      "Full time" com Elza e Garrincha

      Depois que ganhou seu primeiro prêmio internacional, Fheliciano Macan curtia seu momento celebridade. Em Buenos Aires, nos anos 1960, o curitibano foi ver um show de Elza Soares. "Amava ela, cantava suas músicas. A gente se apaixonou de cara", diz o cabeleireiro, que se transformaria em "homem de confiança" do casal Elza Soares & Mané Garrincha.

      Em 1970, a cantora o contratou para serviços full time. "Penteava, secretariava, vestia. Ia comprar meias, calcinhas, sutiãs." A intimidade se concretizou com um convite: morar com Elza e Garrincha em uma mansão no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.

      Fheliciano conviveu por seis meses com o casal e dois filhos de Elza. Tinha uma suíte própria na casa. E foi testemunha ocular da conturbada relação de uma das maiores divas do país e daquele que foi, para os menos conservadores, o maior jogador de futebol de todos os tempos. "O Garrincha era uma figura hilária. Simples, humilde, ingênuo e muito crédulo. Era um homem que falava pouco. E o maior problema nem era a bebida, e sim a relação dele com os filhos de Elza, que não aceitavam a relação."

      Na maior parte das vezes, Garrincha bebia sozinho. "Era um grande drama." E só chamava para compartilhar "aquela coisinha" as pessoas em que tinha total confiança. O cabeleireiro curitibano entre elas. "Sentávamos na varanda e amanhecíamos. Ele sempre contava sobre sua infância pobre. O maior problema foi que ele não teve ajuda para compreender o gênio que foi", diz Fheliciano, nostálgico – e sem gaguejar.

      Confidente do casal, Fheliciano foi procurado pelo jornalista e escritor Ruy Castro, que na década de 1990 escrevia Estrela Solitária, uma comovente biografia de Garrincha. Deu de ombros. "Vou fazer o quê? Ele queria saber o que eu não queria falar."

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