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Médicos lembram desafio de enfrentar a AIDS nos anos 80

Trinta anos depois da primeira morte por AIDS, os primeiros médicos a tratar pacientes infectados no Paraná contam como foi enfrentar a doença ainda desconhecida. Os pacientes contaminados com o vírus tinham pouco tempo de vida

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O CHAMADO

A infectologista Cléa Elisa Lopes Ribeiro era estudante de Medicina, em Uberaba, Minas Gerais, quando soube que o estilista Marquito – primeira vítima oficial da aids no Brasil – seria enterrado na cidade, em 1981. Não pensou duas vezes. Foi até lá. Se bem lembra, naquele dia decidiu que trabalharia com pacientes soropositivos.

O atendimento às vítimas da aids entendido como "vocação", "chamado" e "missão" aparece também na voz de outros profissionais. A infectologista Maria Cristina Assef, por exemplo, chegou ao meio alguns anos depois dos primeiros casos, na década de 1990. Voluntariamente, quando estudante, ia ao Hospital Oswaldo Cruz, no Alto da XV, acompanhar os médicos. Foi ali que se decidiu.

"Ninguém esperava uma nova doença no século 20. Foi uma surpresa", comenta, ao citar as aulas do infectologista Nelson Szpeiter, pioneiro com quem teve aulas na Universidade Católica. "Havia uma aura de mistério em torno da doença", acrescenta.

Ao contar sua opção ao pai, ele quis saber por que ela não havia escolhido a cardiologia, por exemplo. Tarde demais. Naquele idos dos anos 1990, Assef estaria no Hospital do Servidor, em São Paulo, assistindo à carestia do AZT e à média de três mortes por semana. A gente acreditava que estava fazendo história. E fizemos. No começo não havia nada a oferecer. Hoje não é mais assim", diz a médica que faz parte da equipe que acompanha os 1,4 mil pacientes soropositivos do Hospital de Clínicas.

A PESQUISA

A infectologista pernambucana Maria das Graças Sasaki, formada em 1974, começou a trabalhar com soropositivos em 1987, depois de uma longa experiência com doenças parasitárias e infecciosas. Em conversas com colegas que trabalhavam em cidades como o Rio de Janeiro e Santos, entendeu o que poderia realizar em Paranaguá, no litoral do Paraná, para onde se mudou naquela época. Entrevistou e testou 100 prostitutas entre 18 e 31 anos. Chegou a 7% de contaminadas e mudou a geografia da aids no Paraná.

Os dados lhe serviram de moeda de convencimento, na luta por políticas de saúde pública. "Não foi fácil. Uma dessas mulheres engravidou. Havia desafios e poucas informações". Em 1993, Maria das Graças se mudou para Curitiba, passando a trabalhar no HC e no Oswaldo Cruz. Sua pesquisa abasteceu outros profissionais. "Foi um período triste, mas muito estimulante."

O HEROÍSMO

O infectologista José Luiz de Andrade Neto é capaz de falar por horas sobre as dificuldades enfrentadas pelos médicos nos primórdios da aids. Mas sua voz embarga, mesmo, quando trata dos enfermeiros, heróis anônimos dessa história. Nos últimos 30 anos ele observa esse grupo no Hospital Oswaldo Cruz.

Sobre o que se deu nos anos 1980, diz: "Naquela época, ninguém sabia muita coisa sobre a transmissão da doença. Não importava. As enfermeiras entravam no quarto, davam banho nos pacientes depois das diarreias, sem medo. É uma das imagens das quais não consigo esquecer. Foi um momento brutal. Era morte lenta e anunciada – e os enfermeiros fizeram parte disso. Não havia esperança. Dávamos até cinco notificações de HIV por dia."

A enfermeira aposentada do HC Alba de Oliveira Silva conta que as profissionais tinham de se "paramentar" para entrar nos quartos. "Até o dia em que descobrimos que não pegava. Que dava para abraçar aquelas pessoas. Foi uma alegria".

A SOLIDÃO

Um dos primeiros pacientes do psicólogo Antônio Carlos Moreira lhe disse que o inferno existia. Chamava-se "aids". E que só havia uma esperança – o purgatório. Outro doente, um recém-formado em Medicina, reuniu a família e contou que estava contaminado. Em 90 dias, foi excluído. Quem cuidou dele foi um amigo. Para muitos habitantes dos primórdios da aids, o fim foi passado na companhia de estranhos.

A SEXUALIDADE

"Preservativo? Isso é coisa de marinheiro..." escutou certa vez a sanitarista Rita Esmanhoto num de seus muitos trabalhos em prol da saúde pública. Nos primeiros anos da aids, Rita atuou numa área ainda hoje obscura – a prevenção, junto à Secretaria Municipal de Saúde. Foi desse lugar que, ao lado do marido, o médico Nizan Pereira, percebeu todos os tons de cinza revelados pela doença.

Em primeiro lugar, diz, toda história de contaminação é complexa, tanto quanto é complexa a vida humana. Os médicos – acostumados a receitar antibióticos – tiveram de se deparar com narrativas de amor, perdas, desejos e práticas sexuais "que a sociedade costuma empurrar para debaixo do tapete". Foi um aprendizado. Para todos os lados. Rita ainda guarda os adesivos que mandou imprimir e distribuir naqueles dias. Um deles diz "solidaried'aids". São antigos no design, atuais na mensagem.

A IGNORÂNCIA

Para os profissionais de saúde que atenderam e atendem pacientes de aids já adoecidos a palavra preconceito não é uma vaga ideia. Tem cor, cheiro, tamanho, pequenas e grandes histórias de crueldade. O infectologista José Luiz de Andrade Neto – entre centenas de narrativas – lembra de uma passagem bastante simbólica: a de um paciente que atendeu em 1985. Morava na rua. Arrumaram-lhe um, lugar na Frei, em Campo Magro, uma espécie de casa de amparo. Mas havia um medo – o de que contaminasse as verduras que eram plantas no local e distribuídas às feiras. Deu trabalho convencer do contrário. Foi preciso tempo. "A aids é uma doença que tem de ser administrada", ensina.

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