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Rafael Nunes era modelo fotográfico antes de decidir morar na rua: vida perdida para o vício | Reprodução/Facebook
Rafael Nunes era modelo fotográfico antes de decidir morar na rua: vida perdida para o vício| Foto: Reprodução/Facebook

Opinião

O mendigo bonito de Curitiba e seu Show de Truman particular

Cristiano Castilho, jornalista e editor do Gaz+

O Mendigo Bonito de Curitiba poderia ser nome de peça de teatro. Quem sabe até vire, caso o esquizofrênico Rafael Nunes (esse é o nome dele) consiga elaborar uma ou duas frases em uma ordem preestabelecida.

Se o treinarem bem, poderia também aparecer na propaganda televisiva de um dos candidatos à prefeitura da cidade, enrolado em seu cobertor de cachorro, mas exalando beleza ariana. O problema é que, se isso acontecesse, no dia seguinte ninguém mais lembraria quem realmente é Rafael Nunes. E o que ele causou em uma quarta-feira qualquer de outubro.

O rapaz de olhos azuis viveu hoje o seu Show de Truman particular. Brincamos com ele. Gozamos dele. Fizeram dele até um ex-prefeito derrotado. Fizemos dele um meme, sem ele saber. O testamos. Rafael Nunes aparecerá na tevê hoje à noite e dará declarações desconexas e sem sentido. Porque, provavelmente, a pergunta não será "quem é você", mas "você é tão bonito, o que você está fazendo nas ruas?"

Seu cobertor estampa neste momento o site de um dos maiores jornais do país. E ele, de luvinha na mão, só quer ser ele mesmo: fumar pedras e viver ali pelo São Francisco, Centro. Pelos bares da vida. Rafael Nunes tentou matar seus pais. Foi o que disse sua irmã, via Facebook, esse monstro imenso de tentáculos infinitos.

Rafael Nunes fuma crack. É violento e "não fala coisa com coisa". Rafael Nunes – agora gritam aqui na redação que ele está no UOL, na Folha, no Globo! – se transformou em piada sem querer, assim como muitas outras coisas que duram um ou dois dias, como a música do Michel Teló ou o vômito do Justin Bieber.

O problema é que o estopim da graça pela qual passou Rafael Nunes é o reflexo de um problema social. Some-se a isso o poder incrível de disseminação das redes sociais, que nesses casos servem como uma venda sedutora e bem grossa, e temos este show sádico, nossa diversão para uma quarta-feira de 23 graus. A sensação é a de que vivemos na superfície de tudo, nadando o mais rápido possível.

Já há quem duvide que o mendigo é um mendigo. "Como, se ele tem olhos azuis?". Então, a partir de um momento, não se sabe, ou não interessa mais a história de alguém que perambula pelas ruas, usa uma luva estranha, anda com um cobertor fedido e que, como assim?, é bonito.

Deve também, no Facebook, existir uma competição secreta para ver quem cria, mais rápido, claro, o melhor slogan, ou a melhor montagem. Uma rede de barbearia da cidade disse que ele ficou assim (bonito!) depois que passou por lá. "HAHAHAHAHA".

É cada vez mais impressionante a capacidade do ser humano em fazer o que não precisa ser feito. Boa sorte nesse mundo estranho, Rafael. Os esquizofrênicos somos nós.

Uma foto publicada no Facebook – e compartilhada mais de 35 mil vezes (até as 23 horas de ontem) – rodou o Brasil. Mas, por trás das feições nórdicas e dos olhos azuis, o moço alto enrolado em uma manta surrada esconde um drama que escapa às redes sociais. Rafael Nunes da Silva, de 31 anos, é usuário de drogas e há pouco mais de um ano perambula pelo Centro de Curitiba, onde vive como morador de rua.

O crack o fez deixar para trás a casa, a família e uma carreira de modelo fotográfico. Assustados com o status de celebridade instantânea do rapaz, familiares esperam que a superexposição ajude-o, pelo menos, a conseguir o tão sonhado tratamento para se livrar da dependência química.

Rafael morava em Colombo, na região metropolitana, com os pais e com duas irmãs. Trabalhou como vendedor e feirante, antes de se tornar modelo, profissão que exerceu por dois anos. Mas, segundo o pai, o aposentado José Nunes, o consumo continuado de drogas desestabilizou o moço e há pouco mais de um ano ele abandonou a família. "Ele simplesmente saiu", relata.

"Visita"

A cada dois meses, em média, Rafael reaparece na casa da família, permanece por um curto período e volta a sumir sem deixar pistas. A última "visita" ocorreu há um mês. "Ele fala pouco e não conta nada sobre as ruas. Já tentamos internação, já encontramos ele andando como mendigo em Curitiba. Espero que, com tudo isso, a gente consiga internar", desabafa o pai.

Antes de se tornar um "viral" das redes sociais, Rafael já era habitué dos arredores do Largo da Ordem e da Praça Tiradentes. Ao contrário de outros moradores de rua, no entanto, ele sempre anda sozinho. "Eu conheço, mas ele não gosta de se misturar", diz um mendigo que se identificou apenas como Barba.

Na Igreja da Ordem, onde comparece religiosamente todos os dias, Rafael é conhecido por todas as fiéis, mas sob outro "nome". A manta que sempre carrega consigo acabou se tornando seu apelido: "Cobertor". ("Ah, o Cobertor", sorriram, quando a reportagem mostrou uma foto do rapaz). Ele é descrito por elas como um jovem doce – às vezes até infantil –, educado e de fala mansa, mas de pouca conversa.

"Ele tem porte de soldado. É um moço muito bonito e parece ter orgulho disso. Sempre que ele me vê, ele fala: ‘Olha, eu tenho olhos azuis!’", conta a secretária da igreja, Jane Valleri.

Velho conhecido

Rafael também é velho conhecido da Guarda Municipal. Segundo o agente Juliano Rocha, ele costuma vagar pelo Largo, vez ou outra abordando algum passante para pedir esmola. É apontado como "um rapaz bom, que não dá problemas", mas com o típico perfil de usuário de crack: oscila momentos de relativa calma, com alterações em períodos de abstinência.

Segundo os agentes, quando parece estar sob efeito de drogas, o rapaz solta frases desconexas, grita sozinho e chega a "rolar no chão". O moço já chegou a ser flagrado pela Guarda consumindo drogas e encaminhado à Fundação de Ação Social (FAS). "Mas ele nunca deu problema. A droga é uma doença na vida dele. Ele precisa é de ajuda", opina Rocha.

A última passagem de Rafael pela FAS foi na Casa de Acolhida e do Regresso, onde dormiu em 18 de julho. Segundo os registros, ele se apresentou espontaneamente, dizendo que queria roupa e comida. Na ocasião, o rapaz estava irritado, aparentando estar sob o efeito de drogas. O cadastro faz referência, ainda, a um transtorno mental grave que o rapaz sofreria. Para o pai, Rafael desenvolveu os problemas psicológicos por causa do crack. "Ele não tinha nada. Isso é coisa da droga", diz.

Na publicação do Face­­book, a mulher que tirou a foto dele explicou que foi abordada por Rafael, que queria, por meio da fotografia, "quem sabe", ficar famoso. Ao menos por um dia, parece que ele conseguiu.

Dia dos Pais leva rapaz às lágrimas

Na véspera do Dia dos Pais, Rafael Nunes entrou na Igreja da Ordem e, como de costume, se posicionou à esquerda do templo. Segundo o funcionário do local, Alcides Andrade, o "Cobertor" parecia aflito. O rapaz se aproximou lentamente do senhor e logo foi às lágrimas. "Ele chorava muito, muito, muito. Dizia que estava com saudades de casa e que queria ver o pai", relembra Andrade, que se considera um amigo de Rafael.

O funcionário da igreja conta que conduziu o rapaz até um banco, diante do qual se ajoelharam e rezaram por alguns minutos. Após a oração, o moço parecia mais calmo, segundo Andrade, mas ainda estava emotivo. "Eu dei a ele um dinheiro para que o ‘Cobertor’ fosse visitar o pai. Ele ficou muito feliz e foi embora. Ficou dias sem aparecer na igreja. Acho que foi mesmo visitar a família", disse.

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