• Carregando...
Projeto em tramitação no Senado condena infanticídio indígena em aldeias isoladas
Projeto em tramitação no Senado condena infanticídio indígena em aldeias isoladas| Foto:

São muitos os relatos de assassinatos de bebês ou crianças indígenas ao longo da história em documentários, vídeos e declarações de testemunhas do resgate de crianças à beira da morte. Os casos de infanticídio nas aldeias vêm de uma tradição cultural e ocorrem em algumas tribos bastante isoladas quando nascem indígenas com deficiência, gêmeos ou filhos de mães solteiras.

Das 305 etnias presentes no território brasileiro, em pelo menos 18 foi identificada a prática do infanticídio indígena até 2020 segundo informações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Por ocorrerem em locais isolados e pela complexidade do tema, não há dados consolidados sobre as ocorrências.

>> Faça parte do canal de Vida e Cidadania no Telegram

Há ONGs que atuam em parte dessas aldeias tentando impedir que crianças sejam condenadas à morte, mas às vezes são impedidas pelo poder Judiciário, que abre inquéritos para apurar denúncias de sequestro e adoção clandestina de crianças indígenas. No Mato Grosso, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito no último dia 18 após receber denúncia das aldeias Pimentel Barbosa e Etenhiritipá, em Água Boa (MT). Segundo a denúncia, crianças haviam sido retiradas das aldeias para serem atendidas por supostos maus tratos que estariam sofrendo dentro das aldeias e "não teriam sido devolvidas aos pais, sendo entregues em adoção a casais determinados pelos missionários das ONGs evangelizadoras".

As crianças, que muitas vezes são retiradas das aldeias até mesmo por parentes, costumam ter alguma deficiência física ou mental, o que é visto por determinadas comunidades indígenas como um problema ou uma "maldição". Desde atrofia muscular a lábio leporino, o recém-nascido "pode estar sujeito a ser abandonado na floresta, ser queimado ou até enterrado vivo", conta um dos voluntários da ONG Atini-Voz Pela Vida, que tem como objetivo prevenir o infanticídio em comunidades indígenas.

Fundada em 2006, a Atini é uma organização sem fins lucrativos sediada em Brasília e reconhecida internacionalmente pela atuação pioneira na defesa do direito das crianças indígenas. É formada por líderes indígenas, antropólogos, linguistas, advogados, religiosos, políticos e educadores e "nutre profundo respeito pelas culturas indígenas", como informa o site da entidade.

"O infanticídio indígena ainda continua sendo um tabu, apesar de termos mais de dez anos de enfrentamento. Assim como na sociedade indígena ninguém fala sobre isso, na nossa sociedade [também] ninguém fala, ninguém enfrenta, ninguém toma posição. Aliás, a posição mais cômoda tem sido a omissão", disse Reginaldo Veloso, uma das lideranças da ONG, em um vídeo institucional da Atini divulgado em 2019.

Em entrevista à Gazeta do Povo, um dos missionários da Atini, que preferiu não se identificar, conta que a organização não atua para "exterminar a cultura indígena", como apontam críticos da entidade. Pelo contrário, ele explica que a ONG busca "conscientizar sobre os direitos humanos e os direitos das crianças, além de dar condições às crianças que são sentenciadas à morte".

"Devemos dar subsídio para que eles mudem essa cultura, e existe tratamento para muitas crianças que estão fadada à morte. Só precisamos dar oportunidades. Um bebê com lábio leporino, por exemplo, que é visto como uma maldição, pode fazer uma cirurgia de 40 minutos e depois retornar à aldeia sem ser sentenciado. Por que antropólogos entendem que a criança deve morrer se ela tem direito a assistência médica?", questiona o missionário.

O filme "Cortina de Fumaça", lançado pela Brasil Paralelo no ano passado, abordou o problema que pais indígenas vivem quando têm filhos que não são aceitos por suas tribos. Na produção, disponível no Youtube, indígenas sobreviventes relatam sobre a prática de homicídio nas aldeias.

Relato de um yanomami que sobreviveu à tentativa de infanticídio

Na época em que foi secretária da saúde indígena no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, a deputada indígena Silvia Waiãpi acompanhou o relato do índio Renato Sanoma Yanomami, que tenta impedir o assassinato de crianças por deficiência em sua aldeia. Silvia conta que conseguiu ajudar uma criança que tinha paralisia infantil ao levá-la para a cidade fazer tratamento.

"Fui dentro da aldeia em resgate de crianças que seriam sacrificadas. Na época o Renato me pediu ajuda para criar crianças que ele estava resgatando. Alguns a família não queria e jogava fora", disse a deputada.

Em um vídeo divulgado em 2019, Renato Sanoma faz um relato da sua busca por salvar a vida de crianças descartadas nas aldeias. "Tenho salvado muitas crianças por conta do que tenho falado. Vou falando e muitos desistem de jogar as crianças fora, mas ainda tem acontecido. Uma mulher ganhou neném e não quis mais, e essa criança deixou de ser morta porque a gente vai anunciando. A criança acabou de ser adotada por conta do anúncio que tenho feito", disse.

À Gazeta do Povo, Silvia Waiãpi criticou o posicionamento de antropólogos sobre a não interferência em costumes indígenas. "O que acontece de mais grave é a orientação de antropólogos de que não devemos intervir na cultura e deixar morrer. Como vou deixar morrer uma criança por conta de uma cultura que acha que não existe tratamento?", questionou.

Projeto de lei busca criminalizar infanticídio indígena

Em 2015, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1057/07, de autoria do ex-deputado petista Henrique Afonso (AC), que prevê uma série de medidas para combater o infanticídio e outros atentados contra a vida em comunidades indígenas. Para entrar em vigor, o projeto ainda precisa ser aprovado pelo Senado.

A proposta ficou conhecida como "Lei Muwaji", em homenagem a uma mãe da tribo dos suruwahas que se rebelou contra a tradição de sua tribo e salvou a vida da filha, que seria morta por ter nascido com deficiência. O projeto de lei estabelece penas para agentes públicos que deixem de agir para evitar que crianças indígenas sejam mortas por terem deficiência, serem fruto de gestações múltiplas, terem marcas de nascença, serem rejeitadas por um dos genitores, entre outras situações.

A pena por omissão é de um a seis meses de cadeia. Caso os pais ou a tribo "persistam na prática tradicional nociva", a criança deve ser retirada da família e transferida para um abrigo provisório. Se isso não for possível, o recém-nascido é encaminhado à adoção, segundo o texto do projeto.

­"Obviamente as tradições [dos povos indígenas] são reconhecidas, mas não estão legitimadas a justificar violações a direitos humanos. Práticas tradicionais nocivas, que se encontram presentes em diversos grupos sociais e étnicos do nosso país, não podem ser ignoradas e merecem enfrentamento, por mais delicado que seja", explica o autor da proposta.

No Senado, o projeto tramita como o PLC 119/15 e foi arquivado em dezembro do ano passado ao final da legislatura. Em 2019, após quatro anos de tramitação a matéria recebeu o aval da Comissão de Direitos Humanos (CDH), com parecer do senador Telmário Mota (Pros-RR). Desde outubro daquele ano, o texto aguardava o relatório do senador Marcos Rogério (DEM-RO) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Há expectativa entre alguns assessores de que a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que comandou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) na gestão Bolsonaro, seja a relatora do projeto na nova legislatura, que iniciou no dia 1º de fevereiro.

Algumas organizações de antropólogos e do movimento indígena veem o projeto de lei como uma estigmatização dos povos nativos ao associá-los a práticas raras e que, segundo elas, também ocorreriam em outras sociedades. Em uma audiência realizada em 2016 no Senado, antropólogos criticaram a proposta dizendo que, nas entrelinhas, o texto esconde um “esforço para a evangelização” das tribos.

Na mesma audiência de 2016, o índio Kakatsa Kamayura se apresentou como um sobrevivente do infanticídio. Ele foi salvo da morte por uma desconhecida após sua mãe tentar sacrificá-lo porque o pai não o reconheceu como filho.

"Quando eu estava na barriga da minha mãe, meu pai não me reconheceu como filho legítimo. Pela pressão do meu pai, quando eu nasci, ela cavou um buraco e queria me enterrar. Mas uma senhora veio e me levou para a sua casa. Essa senhora me pegou, e eu sobrevivi. Tenho um irmão que foi vítima de infanticídio também. Ele é filho de mãe solteira. Quando nasceu, foi enterrado vivo. Depois de duas horas dentro do buraco, minha mãe o tirou de lá", contou Kamayura na audiência.

Questão cultural x direito à vida

O direito à vida e a defesa da cultura indígena entram em conflitos na seara judicial. Antropólogos criticam a interferência nas populações indígenas como algo desrespeitoso, enquanto defensores da vida e religiosos buscam garantir o direito fundamental à vida.

A defesa da vida conta com leis protetivas e trata-se de um direito universal, presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e um direito fundamental, previsto na Constituição Federal. Sendo assim, tal prerrogativa deve ser interpretada sempre de forma a subsidiar os demais direitos.

Por outro lado, a Constituição estabelece em seu artigo 215 ampla garantia à cultura e determina que cabe ao Estado proteger as manifestações culturais populares, incluindo as indígenas. Ainda em relação aos índios há, no artigo 231, o reconhecimento de sua organização social, seus costumes, suas línguas, crenças e tradições. A Lei 6.001/1973, que instituiu o Estatuto do Índio, também trata da preservação da cultura indígena.

A discussão em torno do infanticídio, entretanto, reacendeu os conflitos e trouxe dúvidas sobre o que deve prevalecer: o direito individual à vida ou o direito comunitário dos indígenas de manterem todos os seus costumes. A discussão tomou proporção maior após Damares Alves apresentar, em 2019 quando ainda era ministra, um plano de combate ao infanticídio indígena. A iniciativa foi bastante criticada por parlamentares da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, que classificaram o plano como preconceituoso.

A ex-ministra disse, na época, que era importante buscar o diálogo com os povos indígenas e criar campanhas de conscientização. “Buscar conversar com os povos, sem fazer interferência cultural. Eu acredito que esse é um problema que o próprio povo pode superar. Muitos povos no Brasil cometiam o infanticídio e já superaram essa prática. É possível que em conversas e campanhas a gente consiga superar essa prática em poucos anos no Brasil”.

Damares começou a confrontar o infanticídio indígena antes de se tornar ministra. Ela é uma das fundadoras da ONG Atini; a ideia de criar a entidade surgiu após a ex-ministra ouvir relatos e conhecer crianças que foram salvas da sentença de morte em aldeias. A filha adotiva de Damares, Kajutiti Lulu Kamayurá, foi entregue à ONG pela própria família para que fosse cuidada longe dos perigos de algumas práticas nocivas.

A adoção ganhou destaque quando Damares assumiu o cargo de ministra no ano de 2019. Na ocasião, críticos da ministra e parte da imprensa apontaram a adoção como um "sequestro". Durante a posse, ao comentar o caso, ela disse: "Eu sou mãe adotiva. É uma adoção extraordinária. A imprensa fala que eu a sequestrei, mas eu não sequestrei. Acolhia crianças em situação de risco", disse a ex-ministra.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]